Tenho falado por aí -Twitter, Facebook etc.- sobre um livro que estou lendo, "Walden" de Henry David Thoreau. Como qualquer pessoa, sou assim: quando algo me agrada, quero partilhar com o mundo. É mesquinho guardar um tesouro só para si (isso mesmo, avareza é pecado capital, amigo). Thoreau não é novidade para mim: em 2006, dediquei uma das primeiras postagens do meu antigo blog a ele. Mas pegar "Walden" (um livrinho fácil, encontrado em qualquer banca de jornal, edição da L&PM) é uma alegria enorme.
Sinto inveja de Thoreau. Nem que seja na pura fantasia. Construir com as próprias mãos uma cabana às margens de um lago, no começo da primavera, quando o degelo ainda está no início...Isso tem um efeito inexplicável sobre um sujeito urbano como eu, morador de uma cidade quente e caótica. É um chamado à SIMPLICIDADE, em maiúsculas mesmo, uma vida simples e singela- e mais verdadeira.
E nós aqui na selva de pedra. Buzinas estridentes dos carros e roncos de motores. Trânsito engasgado: o sinal está quebrado. Guardas neuróticos, empurra-empurra. A carteira de alguém foi levada. O trombadinha passou voando. Uma liquidação é anunciada em altos decibéis, as vitrines de lojas poluindo a vista. Jogaram papel de bala no chão. Mais o copinho de mate e a latinha de cerveja, temos um lixão em miniatura se amontoando em plena via pública. E também o cocô de cachorro e o mamão esmagado, e outras frutas podres, resquício da feira de hoje cedo. Fedor. Buzinas estridentes dos carros e roncos de motores, sim, já disse isso, é que a ciranda não para. Ad eternum ad nauseam.
Ei, Thoreau, tem lugar para mim na sua cabana?
Mas, cá entre nós, não sei se me adaptaria. O fato é que pertenço à concrete jungle.
Vamos buscar o equilíbrio, então: uma estação no lago de Thoreau, outra no meu Rio de Janeiro. Ou nas cidades invisíveis de Ítalo Calvino. Aproveitando o melhor de cada experiência.
Falar em cidades, e Henry Miller e Nova Iorque? Eu prefiro o "Trópico de Câncer", que narra o período parisiense. Lá Miller é um semi-mendigo, passando frio e fome, se arranjando como dá. Mas é o nova-iorquino "Trópico de Capricórnio" o mais visceral dos "trópicos". É doméstico, caseiro mesmo (com tantas lembranças de infância, pais e tios) mas cáustico ao extremo. Miller não poupa seus conterrâneos. A parte em que diz que "queria ver a América arrasada de alto a baixo, exclusivamente por vingança", se fosse escrita no pós-11 de Setembro, horrorizaria os ianques. Daria até cana, talvez. Mas Miller -e isso é um mérito indiscutível- sempre horrorizou os conservadores, e não é por outro motivo que reiteradamente teve suas obras censuradas em sua terra natal.
Miller é um escritor urbano, apesar do período nas montanhas da Califórnia, narrado em "Big Sur e as Laranjas de Hieronymus Bosch" (Jerônimo Bosch? What the hell?, que mania horrível de traduzir nomes). Aliás, meu exemplar do "Trópico de Capricórnio" (edição Círculo do Livro) é urbano desde a capa: é noite, ao fundo as janelas iluminadas dos prédios, e dois vultos na cama em primeiro plano.
Bem, agora vou dizer exatamente por que a vida na cidade grande me atrai: é a riqueza humana, no sentido da diversidade. Pensem nisto: cada janela iluminada de prédio é um mundo. O vizinho pode ser um poeta, um músico, um geômetra. Um pagão, um hare krishna- ou um materialista. Esse pluralismo, essa diversidade, é fascinante. E apenas a vida em cidade grande nos coloca em contato tão próximo, pessoas diferentes que somos.
(Mas claro que nem sempre funciona assim. Podemos ser completos desconhecidos para nossos vizinhos. Chegar e sair sem sequer um "bom dia", sem sequer olhar no rosto. Desse jeito, tanto faz morar na cidade grande quanto no Saara).
O ser humano é gregário: precisa do outro. Quando meu amigo Alexandre vinha com um papo individualista, tipo "não preciso de ninguém", eu rebatia: "cuidado, Alexandre, estamos sempre precisando do outro...Para nascer precisamos do médico, para crescermos com saúde, que nossos pais cuidem de nós, para aprender, que professores nos ensinem...", ao que o Maurício acrescentava, "para comer alguém, que uma mulher nos dê..."
É esse o grande mérito da cidade grande: juntar pessoas. É por isso que, apesar de tudo, ainda prefiro as cidades. Animal urbano, eu disse.
Claro, o lado chato acompanha. O cocô de cachorro e o buzinaço vêm no pacote.
6 comentários:
Por incrível que pareça, hoje entrando em um dos cartórios do Fórum de RP deparei-me com dois serventuários conversando:
- Com vizinho meu é só 'bom dia' e 'boa noite'
- Eu tbm, só converso o mínimo do mínimo.
Fiquei a pensar sobre o motivo dessa antissociabilidade. E é pelo mesmo motivo que muitos sentem-se tão sós mesmo em cidades com alta densidade populacional. Estão trancados dentro de si mesmos.
Eu também me aventuro. E tenho vizinhos fantásticos.
Seu post retrata uma das coisas mais legais dessa vida: surpreender-se com o mundo do próximo.
Ótima postagem!
A diversidade é algo misterioso...mexe com o imaginário e isso é simplesmente fabuloso - pelo menos aos que se aventuram na expedição rumo a "riqueza humana"...eu me aventuro e você?
Bom, graças ao Google, la vamos nós novamente:
Havia dito que no dia em que li esse post curiosamente por acaso ouvi parte de uma conversa de serventuários da justiça, mais ou menos assim:
- Com meu vizinho é 'bom dia' e 'boa noite'
- Comigo tbm, só converso o necessário
Achei intrigante porque essa ojeriza pelo que entendi não teve razão plausível, uma antissocialbilidade sem motivo, típica do liberalismo moderno, da frieza social que nos cerca, diametralmente oposta à sua mensagem neste post.
Ao mesmo tempo que vivemos em cidades com grande densidade populacional, reclamamos da solidão.
Isso me lembrou uma musica, 'Silêncio na multidão', do Cidadão Instigado.
É estranho mesmo esse sentimento d solidão em meio a multidão na cidade. Ela diz mais sobre não saber ter gente próximas ou desejar muito a companhia d um só.
Veja q curioso. Vc citou tipos característico do teu cotidiano. Do meu lado se olho as pessoas são tão iguais. Perdidos e escondidos e sendo felizes d mentirinha pq suas verdades não são d poesia, não são musicais.
Bjs
Adorei a reflexão!
beijocas-intrigadas ;)
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