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quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Abaixo a poesia cor-de-rosa


Maiakovsky, em "A plenos pulmões", faz a oposição entre os versos "de donzela", digamos assim, e a poesia engajada, politizada, que escrevia. Diz que sacrificou sua verve lírica em prol da revolução comunista -e conclui o poema apresentando ao Comitê Central do futuro não o registro partidário, mas seus versos militantes- assim como, diante do horror nazista, Brecht negligenciou poemas sobre macieiras em flor em prol da denúncia política (como em "Mau tempo para poesia", aqui).

É um questão de compromisso moral. Diante das demandas concretas do cotidiano -guerras e revoluções, lutas e luto, entusiasmo e angústia- seria desrespeitoso, ou ao menos mostra de alienação, voltar-se para outros assuntos que não aqueles colocados na ordem do dia. Como falar de amor se as bombas caem, de namorados se o nazifascismo bate à porta? E eis os poetas assassinando a Musa pelas contingências da vida.

Não se pode exagerar, todavia. A arte tem justamente o poder de aliviar o cotidiado. É um bálsamo. O homem não pode viver sem arte, os "músicos mil vezes milenares" que, com junco, fizeram flautas, como diz Roger Garaudy, mostram que a manifestação artística é inerente ao ser humano. Um mundo sem arte seria um túmulo (já um mundo sem breganejo seria um lugar melhor, mas isso é outra história). Penso que no meio da dor pode caber um pouco de lirismo, e entre tiroteios se pode ter tempo para o sentimento. "Filmes de guerra, canções de amor", como no disco dos Engenheiros do Hawaii. É preciso achar o equilíbrio.

Como quer que seja, há artistas que abrem mão do lado, digamos de novo, "colorido" da vida em prol de uma abordagem pouco convencional. Esqueçam, por exemplo, o parnasianismo rebuscado que compara o trabalho de fazer versos à arte de ourivesaria, aquele que fala em mármores de Carrara e em "alvos cristais", em versos de ouro engastando a rima como rubi, como na "Profissão de fé" de Olavo Bilac (aqui)- falemos de catarro, caveiras, vermes e carnes decompostas. Falemos de Augusto dos Anjos.

Augusto dos Anjos também viveu em tempos conturbados, a Primeira Guerra Mundial, definida na época por Trotsky como "o colapso mais colossal na História de um sistema econômico, por suas próprias contradições internas" ("The War and the International", 1914) e, além de dificuldades financeiras graves (professores sempre passaram apuros, vejam só), era tuberculoso. E daí vêm versos como estes:

Oh! desespero das pessoas tísicas,
Adivinhando o frio que há nas lousas,
Maior felicidade é a destas cousas
Submetidas apenas às leis físicas!

(...)

Descender dos macacos catarríneos,
Cair doente e passar a vida inteira
Com a boca junto de uma escarradeira,
Pintando o chão de coágulos sanguíneos!

Sentir, adstrictos ao quimiotropismo
Erótico, os micróbios assanhados
Passearem, como inúmeros soldados,
Nas cancerosidades do organismo!

(...)

Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro,
Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência!

Em "Os doentes", poema primor de otimismo, como se vê desde o título. Falar de amor?

Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a . . ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.

Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!

Em "Versos" -imaginem só- "de amor". Uma ducha de água fria nos ingênuos e polianas da vida, nos "vegetarianos e avozinhas de família respeitáveis", como diz Alan Woods ("Reformismo ou revolução"), se referindo aos setores pacifistas e reformistas da sociedade.

Não é de estranhar que Augusto não tenha sido exatamente um exemplo de poeta de sucesso. Apenas depois, um tanto depois de sua morte é que seu talento passou a ser devidamente reconhecido. Hoje é um dos grandes da poesia nacional, sem que tenha sido "filiado" a alguma escola literária- "isso de escola é coisa para medíocres", como disse falando dele Órris Soares.

Voltando a Leon Trotsky. Em seu manifesto "Por uma arte revolucionária independente", com André Breton, é dito que

a arte verdadeira, a que não se contenta com variações sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária, tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade (...)

À sua maneira, Augusto dos Anjos foi revolucionário ao, figuradamente falando, escarrar sobre toda a poesia cor-de-rosa de então. Salve Augusto! "...Iuppiter arces/ temperat aetherias et mundi regna triformis,/ terra sub Augusto est" (Ovídio, "Metamorfoses").

1 comentários:

ADVOGADO ADRIANO ESPÍNDOLA CAVALHEIRO disse...

Caso permita, vou publicar seu texto num blog que mantenho voltado à poesia. Abraços Tejo.

Ah, mande a autorização para meu email defesadotrabalhador@terra.com.br

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