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quinta-feira, 9 de maio de 2013

O tabu da prostituição


O dogma só tem razão de ser diante da religião, religião aqui como conjunto de "verdades absolutas" contra as quais não cabe divergência. É porque é e ponto final. Há religiosos em todos os campos, da política à religião propriamente dita (claro). É o reino do pensamento binário, A ou B, isso ou aquilo, como se a vida não comportasse terceiras, quartas e quintas possibilidades distintas. Não há nada mais estranho ao marxismo do que o pensamento binário. A discussão e a colisão de concepções é, como diz Adam Schaff, "a alma da dialética" e, como tal, deve ser respeitada "sobretudo por marxistas". Mais que isso, prossegue Schaff,

é realmente estranho procurar substituir por decretos a busca pela verdade, o que só se pode realizar com luta, em geral com o uso do método de experiência e erro. E com que base? Poderíamos perdoar tal procedimento, em última análise, nos religiosos, mas jamais nos marxistas.

Grifo meu, todos os trechos d'"O Marxismo e o Indivíduo". O burocrata, o religioso, substituem o debate pela canetada, pelo decreto; não o marxista. Dito isso, falaremos aqui de um desses assuntos que têm recebido abordagem binária, a prostituição, que, se nunca saiu de evidência, está ainda mais na crista da onda em razão da "Lei Gabriela Leite", PL 4.211/ 12, projeto de lei de iniciativa de Jean Wyllys do PSOL (teor aqui), buscando regulamentar a atividade dos profissionais do sexo. A própria esquerda aborda o tema de forma rasteira, o que é imperdoável.

Na Tribuna do Advogado da OAB/ RJ nº 525 (abril de 2013), há um debate em torno do PL, com a voz a favor de Gabriela Leite, fundadora da Rede Brasileira de Prostitutas, que dá nome à lei, e contra de Alana Moraes, da Marcha Mundial das Mulheres. Gabriela parte do óbvio: a lei regulamentará uma situação existente de fato. Bordeis, cafetões e prostituição são uma realidade, apenas jogados para debaixo do tapete para não chocar "a moral e os bons costumes". A legislação porventura existente é de uma inutilidade às raias do constrangedor. Por exemplo, o art. 227 do Código Penal diz ser crime, com pena de reclusão de um a três anos, "induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem". Ora, aqui mesmo, na esquina do meu escritório, no Centro do Rio, há uma senhora (isso, uma senhora) distribuindo panfletos de "centros de lazer". Todos com telefone e endereço -a maioria aceita cartões de crédito- apesar do mesmo Código Penal punir, com dois a cinco anos de reclusão, o ato de "manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente" (art. 229) e, com um a quatro anos, quem "tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça" (art. 230). Situações formalmente proibidas mas socialmente toleradas, incorporadas aos costumes. Assim como a expressão "mulher honesta" (como a única suscetível de estupro) saiu do Código, por seu anacronismo gritante, bem como o crime (!) de adultério, por igualmente ser defasado, creio que não faz sentido criminalizar o sexo enquanto atividade econômica. A exploração -que existe- vem, justamente, da (ou pseudo) clandestinidade. Joguemos às claras, com fiscalização e assistência dos órgãos públicos- não é melhor do que... "proibir"? Não se resolve questões sociais à base da canetada.

Vejamos alguns dos argumentos de Alana. Os dois textos, contra e a favor, estão na íntegra aqui.

Ao legalizar as casas de prostituição, o projeto vai ao encontro dos interesses dos empresários da prostituição, um mercado altamente lucrativo e em expansão nesses tempos de grandes eventos.

Ora, é evidente que o empresariado persegue -é de sua essência- ao máximo o lucro; se não com a prostituição, com o setor bancário, jogo do bicho, empreiteiras, grifes, meios de comunicação, indústria farmacêutica, bélica etc. Isso faz parte da economia de mercado. O combate ao empresariado -menos que isso, à determinada atividade (!) que o empresariado possa explorar- só tem coerência se inserido no combate à própria economia de mercado. Assim, a fonte de lucro deve estar interdita não só via prostituição, mas também via setor bancário, comércio etc. Proibir algo, simplesmente porque alguém lucrará com esse algo -em uma economia de mercado, repito- não faz sentido. Caso contrário, proíbamos, por exemplo, a venda de sapatos- afinal, o empresariado do ramo de calçados lucra com isso. Ademais, como a própria articulista lembra, o mercado já é lucrativo, já se está lucrando com ele. A legislação apenas regulará uma situação existente de fato.

A atividade precisa ser problematizada na sociedade como um mercado que funciona a partir da venda dos corpos das mulheres para a satisfação sexual dos homens e que só é possível porque existe uma relação de poder desigual estabelecida (...) Hoje, uma das nossas lutas é para dizer que não é natural que mulheres vendam seus corpos e experimentem uma sexualidade mercantilizada.

Aqui enxergo, data venia, dois equívocos. O primeiro: ao combater o machismo, a articulista reproduz argumento machista. Afinal, diz que prostituição é a "venda do corpo das mulheres para satisfazer homens", como se APENAS a mulher pudesse ser profissional do sexo. Esquece que também pessoas do sexo oposto podem se prostituir; homens "vendendo o corpo" para satisfazer mulheres ou outros homens. A prostituição não é exclusividade do gênero feminino. Segundo equívoco: por que "venda de corpo"? Estranha forma de se referir a uma relação sexual. O profissional do sexo, ao contrário de estar "vendendo seu corpo", está prestando uma espécie de serviço de natureza sexual. É espécie do gênero "prestação de serviços", portanto, assim como aplicar massagens, cortar cabelos, costurar uma roupa sob medida, pintar uma parede ou -já que sou advogado- fazer uma defesa em juízo. Nenhum desses profissionais está sendo vilipendiado em sua dignidade humana, nenhum está se vendendo, mas tão-somente realizando um serviço. Nesse sentido, é excelente a fala de Nathalie Heinich (entrevista na íntegra aqui):

P - Por que não proibir a prostituição?
R - Trata-se de um problema, antes de tudo, da proteção contra a prostituição forçada. Este é o único combate que merece ser levado no plano político. Desde que haja consentimento, toda relação sexual entre adultos só diz respeito aos envolvidos, e não ao Estado. Há um problema de princípio, a sexualidade não deve ser regida por leis, é questão de proteção das liberdades individuais.

P - O que dizer do argumento de “atentado à dignidade humana”?
R - É um argumento totalmente falso. Não se trata de vender seu corpo, mas de um serviço. Toda pessoa que trabalha vende um serviço. O serviço sexual é bastante particular, e não podemos obviamente assimilá-lo a qualquer outro, mas não é por isso que se deve fazer dele um atentado à dignidade humana. Isso subentenderia que a sexualidade em si seria algo indigno. Por trás desta posição há um tipo de puritanismo, que condena toda forma de sexualidade fora de um quadro tradicional da vida conjugal. É uma extensão abusiva da noção de dignidade.

Matou a questão. A peculiaridade do profissional do sexo é trabalhar com o corpo; mas também trabalham com seus corpos os atletas e as modelos, e não creio que alguém pretenda abolir o esporte e a moda.

Decerto a relação sexual é "bastante particular", como diz a socióloga francesa. É o ato maior de intimidade, é o ato pelo qual a espécie se reproduz. Possui uma carga emocional evidente: preferimos fazer sexo com pessoas que sejam importantes para nós. Mas é isso. Não é algo metafísico ou transcendental, ao contrário, é uma função vital partilhada com as demais espécies, como comer e beber água. O que faz portanto com que consideremos sexo por dinheiro -desde que consensualmente- um "atentado à dignidade humana"?

Respondo: é o moralismo judaico-cristão, entranhado em nossa psiquê por mais que não nos demos conta, e geralmente não nos damos mesmo.

É o velho discurso religioso, o que proíbe o sexo antes do casamento, que proíbe o sexo sem finalidades reprodutivas, que proíbe as relações homoafetivas. É ele, o tabu religioso, que dará ao sexo essa carga "metafísica" que não possui, ele que identifica a prostituta com a "Grande Babilônia". Vejamos, a Bíblia:

Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne. (Gênesis 2:24)

Assim não são mais dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem. (Mateus 19:6)

O "exclusivismo" da relação sexual -e sempre para fins de procriação- é inerente ao discurso religioso que, por sua vez, nada mais faz que refletir, no plano superestrutural, a dominação de classe. A opressão de gênero começou com a opressão de classe, e sobre isso me reporto à "Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado" de Engels. Se tenho bens, quero deixá-los a meus herdeiros. E, para me garantir de que aqueles herdeiros sejam realmente meus, é preciso firmar a exclusividade sobre a mulher. E ei-la trancafiada no gineceu grego ou sob a burka pseudo-islâmica, conforme a cultura e período histórico.

A prostituta, que é a antítese da Virgem Maria, a prostituta, que não é exclusividade de ninguém- não assumiria assim um caráter revolucionário? Incomoda, perturba. Não é de se admirar que tenham sido registrados assassinos seriais na História com predileção por prostitutas; se por um lado o ofício lhes expõem ao contato com os mais diversos tipos de pessoas, portanto a maiores perigos (problema que seria enormemente diminuído se houvesse regulamentação), por outro lado a figura arquetípica da prostituta abala a mentalidade patriarcalista, e o psicopata, mesmo de forma inconsciente, não está imune ao abalo. "Puta", "vagabunda" ou "piranha" são os xingamentos por excelência, quando se trata de ofender uma mulher. São o correspondente feminino do "broxa" e "viado", também sintomas da mesma opressão de gênero.

É preciso tirar a prostituta do gueto. Nenhuma categoria pode ser privada de direitos previdenciários e trabalhistas. Seus ambientes de trabalho devem ser fiscalizados, e, havendo irregularidades, o dono do local deve ser autuado. A odiosa figura do cafetão existe pelo vácuo legal. Com a atividade trazida à luz do dia, sob os olhos do Ministério Público do Trabalho, o grau de exploração imposto aos profissionais do sexo diminuiria enormemente.

Deixo claro duas coisas. Primeiro, é evidente que os órgãos públicos são falhos em suas atribuições, as fiscalizações -em qualquer área- são defeituosas e a corrupção impera. Mas é melhor uma atividade que receba fiscalização ineficiente a uma que não receba fiscalização alguma, por ser clandestina. Segundo: enquanto houver apropriação privada do trabalho alheio, existirá exploração. Só muda o grau. O projeto de lei do Jean Wyllys não fala em profissional do sexo assalariado (e sim autônomo ou cooperativado, seja por esquecimento seja por má técnica legislativa), mas também é uma questão colocada na mesa. Sempre que se trabalha para outrem, se está sendo explorado. Podemos, então, para concluir, voltar ao texto de Alana, na Tribuna do Advogado:

Lutamos por (...) uma autonomia livre das regras de mercado.

Aí é que está! Não é apenas a sexualidade que deve estar "livre das regras de mercado". E sim todos os aspectos da vida humana. O combate ao sexo enquanto atividade mercantilizada deve estar inserido no combate à mercantilização de toda e qualquer atividade humana. Em outras palavras, no combate à economia de mercado, combate esse que só se dá de forma coerente através do marxismo revolucionário. Senão fica-se no mero chavão moralista judaico-cristão.

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