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sexta-feira, 12 de abril de 2013

Engels e a questão do voto


Joycemar Tejo
abril de 2013

Vejamos o seguinte trecho:

Já podemos contar com 2 1/4 milhões de eleitores. Se isto continuar assim, conquistaremos até ao fim do século a maior parte das camadas médias da sociedade, tanto os pequenos burgueses como os pequenos camponeses, e transformar-nos-emos na força decisiva do país perante a qual todas as outras forças, quer queiram ou não, terão de se inclinar. Manter ininterruptamente este crescimento até que de si mesmo se torne mais forte que o sistema de governo actual, não desgastar em lutas de vanguarda esta força de choque que dia a dia se reforça, mas sim mantê-la intacta até ao dia da decisão, é a nossa principal tarefa (...) A ironia da história universal põe tudo de cabeça para baixo. Nós, os "revolucionários", os "subversivos", prosperamos muito melhor com os meios legais do que com os ilegais e a subversão. Os partidos da ordem, como eles se intitulam, afundam-se com a legalidade que eles próprios criaram.

Talvez cause surpresa a alguns que o autor de tais linhas, uma espécie de "elogio da legalidade", seja ninguém menos que Friedrich Engels em pessoa. O trecho citado, retirado da introdução à "Luta de Classes na França de 1848 a 1850" de Marx, edição de 1895 (aqui), podia parecer algo como uma renúncia aos velhos métodos de combate ou, mais do que isso, uma apologia do voto como via para o socialismo. Mas se trataria de uma interpretação equivocada.

Engels, no texto citado, ao analisar os levantes operários europeus da segunda metade do séc. XIX, chega a uma conclusão óbvia: a luta de barricadas, diante do ascenso técnico-militar das forças da reação (o Estado), passa a ter menos e menos utilidade. Torna-se inviável enfrentar, militarmente, tropas treinadas e equipadas via confrontos de rua; aliás, conforme a engenharia de determinadas ruas ou zonas urbanas, a opção pela barricada chegaria às raias da loucura, nas palavras do próprio Engels. É verdade que, como diz Engels, a barricada, mesmo em seu período "clássico" (mais ou menos fins da década de 1840) tinha objetivo mais moral do que propriamente militar; era o exemplo dos insurretos, sua convicção e resistência, inflamando o resto da população e "abalando a firmeza" das tropas da reação que importava. Como quer que seja, esse tipo de confronto vinha se tornando cada vez mais difícil e inútil, o que não quer dizer, prossegue Engels, que as lutas de rua deixarão de ter importância no futuro- apenas que "as condições se tornaram muito mais desfavoráveis para os combatentes civis, muito mais favoráveis para a tropa".

Diante dessa observação, há que se perguntar se vale a pena insistir no método ou se se deve procurar novos instrumentos. Engels constata outro fato: o êxito eleitoral indiscutível dos socialistas (socialdemocratas, sinônimos à época), com perspectivas de ainda maior crescimento. Em outras palavras, a burguesia sendo derrotada, não nas ruas, mas em seu próprio meio, o do campo institucional. Respeitando a "regra do jogo", o proletariado se fazendo ouvir e colocando no parlamento seus próprios representantes. Algo mais proveitoso do que a escaramuça de rua. Quais as vantagens do uso do sufrágio, para a classe trabalhadora? Engels as elenca: não apenas permitir saber "quantos somos", mas mostrar, pelo aumento dos votos, o aumento da influência das ideias; permitir o contato com as massas populares através da agitação eleitoral; garantir a tribuna no parlamento; e por aí vai. Não é possível, se se fala seriamente em luta de classes, desprezar todas essas ferramentas.

Essa lição, bem assimilada pelo leninismo (e não poderia ser diferente, dado que "o marxismo encontrou sua expressão histórica no bolchevismo", como diz Trotsky) está consolidada, digamos assim, no clássico "Esquerdismo...", que reforça o ataque aos oportunistas: há que participar do parlamento, o que não quer dizer que sempre se deva participar. Lênin dá como exemplo de boicote acertado o de 1905, já os "boicotes de 1907, 1908 e dos anos seguintes foram erros (...) mais sérios e dificilmente reparáveis". A dificuldade, para um partido revolucionário, está em saber exatamente quando convém o quê. Como quer que seja, o "boicote" puro e simples, "por princípio", é um erro tático considerável em face das vantagens que, como Engels exemplifica acima, o sufrágio pode trazer.

Os anarquistas, quando pregam o voto nulo sob a alegação de que ninguém lhes representa, partem de uma premissa errada. Quando, de um ponto de vista revolucionário, se defende o voto, não se está com isso depositando confianças no institucionalismo nem tampouco transferindo para o parlamento o poder popular; e sim, ao contrário, utilizando tal espaço para justamente denunciar tanto o institucionalismo quanto o parlamento. Se o inimigo lhe coloca um megafone com amplificador à disposição, por que sussurrar com voz débil? O voto nulo -que, como vimos, não é recusado "por princípio" pela tradição leninista- faz sentido em determinados momentos, quando há por exemplo grande adesão de massas e/ ou instabilidade institucional evidente. Fora isso, é jogar fora em vão uma boa ferramenta. Não é só nessa questão que os anarquistas estão, data venia, equivocados, e a propósito me reporto a este post.

Trotsky diz, no "Programa de Transição", que a luta contra o fascismo não começa na redação de algum jornal liberal, e sim nas fábricas e termina nas ruas: é nas ruas, afinal, que a luta de classes se decide. Porém, podemos acrescentar que a luta -não só contra o fascismo, mas contra todas as forças do capital, qualquer que seja sua vertente- não prescinde dos jornais (liberais, inclusive, porque não se pode desconsiderar as contradições inter-burguesas) e do... parlamento! O que não quer dizer -será preciso repetir isso a essa altura?- que devamos confiar no institucionalismo. Iza Salles, em sua biografia sobre Canellas, fala que o texto de Engels acima deu fôlego aos reformistas do início do séc. XX. Pode ser que sim, mas não pelo texto, e sim pela interpretação que se faz dele. Os oportunistas sabem, como ninguém, alterar a seu bel-prazer as coisas mais claras.



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