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quinta-feira, 20 de junho de 2013

Desarmamento e pacifismo


Uma coisa facilmente constatável é que o campo de assuntos inseridos no tema "defesa" -armas de fogo, equipamento e estratégia militares etc.- é quase absolutamente tomado pela direita. Assim como nos EUA, da secular National Rifle Associaton, o interesse por esses assuntos parece estar restrito às vozes conservadoras da sociedade. A esquerda (aqui falo em sentido lato), talvez tomada por escrúpulos politicamente corretos, deixa o campo livre e não tem uma posição a respeito, ou, quando tem, é a partir de premissas erradas, o que leva a conclusões igualmente erradas.

A direita, pois, defende o armamento da população. Por isso a esquerda não deve igualmente defender? Ao contrário.

O Estado possui o monopólio da força física legítima, como diz Weber. Os marxistas concordamos com isso (a questão do monopólio, não da legitimidade), e acrescentamos: força física da classe dominante sobre a classe dominada. "O direito de dispor de contingentes de homens armados é o direito fundamental do poder de Estado", como diz Trotsky ("História da Revolução Russa", aqui), e o Estado não abre mão dessa prerrogativa: e dá-lhe bordoadas sempre que convém. Não há nada mais autoritário que o batalhão de choque. Até as guardas municipais, que não têm poder de polícia, imitam a moda: escudos, capacetes, gás de pimenta, bombas de gás e cassetete sobre o povo que protesta. Porque o batalhão de choque não tem por objetivo reprimir criminalidade. E sim reprimir a massa organizada, e a massa se organiza apenas quando protesta. É contra a massa organizada. Das instituições autoritárias de um Estado ontologicamente autoritário, o batalhão de choque portanto é o autoritarismo levado ao extremo. Nesse cenário, uma pergunta que naturalmente nasce é se o povo, por estar desarmado, não se encontra sob maior vulnerabilidade diante do autoritarismo estatal. O desarmamento da população civil, assim, consolida de jure uma questão de fato: o monopólio da força nas mãos do Estado, que é, como dito, essencialmente autoritário. Já temos aí, entendo eu, um motivo para nos opormos ao desarmamento civil. É uma questão de Teoria Geral do Estado.

Os pacifistas se horrorizam com esse debate. Acham que a violência vai aumentar se o povo estiver armado, mas, na verdade, a violência não vai parar enquanto o Estado estiver armado. Melhor dizendo: enquanto houver Estado. Enfrentando a questão do pacifismo, no "Programa de Transição" (aqui), Trotsky assim diz:

"DESARMAMENTO"? Mas todo o problema se resume em saber quem desarmará e quem será desarmado. O único desarmamento que possa prevenir ou pôr um fim à guerra é o desarmamento da burguesia pelos operários. Mas para desarmar a burguesia, é necessário que os próprios operários estejam armados.

A sociedade de classes é violenta por sua natureza. A paz não se obtém desarmando um lado, senão todos; e isso implica no próprio fim da sociedade de classes.

Há a questão da defesa pessoal. Como todo especialista da área diz, é fortemente desaconselhado reagir a indivíduos armados. Ademais, não estamos no Velho Oeste, colts na cintura e cada um por si- o Estado, inclusive para justificar-se, objetiva a paz social (mesmo que a paz dos cemitérios). Há um corpo de leis e instituições que garantem, em tese, a segurança pública. Não se trata portanto de retroceder a um período histórico em que a justiça privada era a regra, sendo certo que torná-la estatal, sob princípios processuais e criminais afins com a dignidade da pessoa humana, é um avanço indiscutível. O Estado é autoritário por sua natureza, mas é melhor (menos pior) que adote a forma do Estado Democrático de Direito contemporâneo. Quando se fala em arma para defesa pessoal, portanto, não se trata de substituir o papel das instituições. Mas me parece evidente que o uso civil de armas tem efeito inibidor sobre a violência. Afinal, havendo o risco de se deparar com uma vítima armada, o assaltante, o estuprador, pensará duas ou três vezes. Daí para um maior respeito entre indivíduos é um pulo, e é uma pena que esse respeito tenha origem no medo de se levar um tiro, mas é o ser humano que temos. Há então, em minha opinião, um elemento psicológico de dissuasão enorme, no que tange à redução da violência.

A constituição dos EUA, que é uma referência no assunto, diz o seguinte na famosa segunda emenda (aqui):

Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido.

O povo possuindo e utilizando armas, por direito, visando à própria segurança do Estado. Interessante frisar que as milícias populares são reivindicação clássica do socialismo. Lênin, em "O Estado e a Revolução" (aqui), ao falar da Comuna de Paris, destaca:

O primeiro decreto da Comuna suprimiu, pois, o exército permanente e substituiu-o pelo povo armado. Essa reivindicação encontra-se, hoje, no programa de todos os partidos que se dizem socialistas.

Ao desde já assegurar o armamento da população, inclusive para fins de defesa nacional, a constituição ianque é progressista no ponto.

Penso eu que, com o requinte das tecnologias de guerra, já é romântico, às raias do absurdo, conjeturar a substituição das Forças Armadas pelo povo em armas. Especialistas são fundamentais. Não se vence (se é que se pode vencê-los) os F-22 Raptors apenas com coragem e engajamento. Mas ao lado dos especialistas, das forças regulares, eu estimularia as milícias operárias- como a Venezuela tem feito, por exemplo. É claro que pode surgir ciumeira por parte das tropas permanentes, mas uma sociedade que se pretende construindo o socialismo deve superar essas contradições.

Nesse ponto, é preciso dizer o seguinte: há que acabar com a desconfiança, por parte da esquerda, sobre as Forças Armadas. Sim, são conservadoras- mas porque o Estado é conservador, e as FFAA nada mais são que seu braço armado. É o materialismo histórico em sua evidência. Mas, assim como não desprezamos a luta dentro do Parlamento e do Judiciário, aspectos do mesmo Estado conservador, não podemos abrir mão da luta dentro das FFAA. Há que ganhá-la, principalmente aos seus elementos proletários.

É verdade que nossas Forças Armadas estão alinhadas com a ideologia política/ militar ocidental. Ocupa o Haiti a soldo do imperialismo, por exemplo. Porém, isso se dá pelo simples fato do Estado brasileiro estar alinhado com a ideologia política/ militar ocidental. As FFAA são apenas seu braço armado, repito. A superestrutura acompanha a base. E se a Embraer fabrica Super Tucanos para serem usados na Colômbia contra as FARCs-EP, e a partir de 2015 no Afeganistão (aqui), é apenas a lógica de mercado. A indústria bélica, inclusive a estatal, fabrica para quem paga mais. Não é que não devamos nos indignar com, e combater, isso; mas se a indignação fica no campo do pacifismo moralista, não se vai longe. Sob outra política, a postura, o comportamento, mudam. E obviamente a mudança radical que se pretende na política pressupõe uma ruptura sistêmica.

Gosto, pessoalmente, da figura de Gandhi. Deixou belas frases e seu método, ainda que não-violento, ou mesmo por isso, requer, com certeza, coragem. Mas expressa um reformismo pequeno-burguês. O boicote e a resistência pacífica têm importância, mas não bastam apenas, conforme a demanda, o contexto, a conjuntura diante dos olhos. Não substitui a ação direta. A propósito, diz Trotsky, em sua "Carta Aberta aos Trabalhadores da Índia", 1939, aqui, com grifo meu:

A burguesia indiana é incapaz de levar uma luta revolucionária. Ela é ligada em demasia ao imperialismo britânico, ela depende dele. Ela teme pelos seus próprios bens. Ela tem medo das massas. Ela busca um compromisso a qualquer custo com o imperialismo e engana as massas com esperanças de reformasvindas de cima. O chefe e profeta desta burguesia é Gandhi: chefe fabricado e falso profeta! Gandhi e seus compadres desenvolveram a teoria de que a situação da Índia vai melhorar sem parar, que suas liberdades vão se ampliar, que a Índia vai se tornar, pouco a pouco, um dominion ["domínios", ligados à Coroa britânica mas quase independentes] na via de reformas pacíficas. Mais tarde, talvez, obtenha a independência. Esta perspectiva é radicalmente falsa.

É verdade que, em torno de uma década depois desse texto, a Índia conseguia sua independência. Mas menos pela resistência pacífica e mais pela decadência da Inglaterra, aos farrapos após a Guerra. Decadência que, talvez, e eu acredito que sim, seria acelerada pela resistência direta.

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