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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Leninismo e críticas "pela esquerda"


Joycemar Tejo
outubro de 2013

Há crítica e críticas. Umas para destruir, outras para ajudar, algumas injustas, outras, bem fundamentadas. Os marxistas não deveriam se melindrar com as críticas, sendo o confronto de ideias a "alma da dialética" (Adam Schaff). Coisa diferente é a agressão gratuita: nesses casos, manda-se à merda e está tudo bem. Não se pode agradar a gregos e troianos. Desafetos sempre existirão, pelos mais diversos motivos, inclusive pelo simples "não ir com a cara". Mas os cães ladram e a caravana passa, de modo que nossa proteção contra o, digamos assim, veneno alheio, está em nosso próprio proceder. Nesse sentido me vem à memória uma anedota árabe. O profeta pedia a Deus, toda noite, "Senhor, livrai-me da língua dos caluniadores", ao que Deus um dia responde, "meu filho, queres ser melhor que eu?".

Dito isso, entendam: o comentário negativo é inevitável. O que não quer dizer que não possamos tirar algumas lições dele, e nesse sentido, para mim que sou leninista, considero oportunos os comentários por parte dos anarquistas e dos comunistas "de esquerda". Esquerdistas infantis que sejam, têm a acrescentar.

Por exemplo, acho importante quando nos acusam, aos leninistas, de autoritários. É importante não porque o leninismo o seja -ao contrário, é a forma mais democrática de partido, e aqui faço uma defesa- mas porque pode vir a sê-lo, hipótese na qual deixa de ser leninismo. E é importante que tenhamos isso mente: que não estamos imunes à degeneração. A melhor das formulações pode, conforme as condições concretas, degenerar. Não há experiência humana isenta disso, e o partido leninista não é exceção. Do centralismo democrático podemos cair no centralismo burocrático, dos "Guias Geniais" baixando suas resoluções para o conjunto da militância, como bons soldados, obedecer acriticamente. Não há nada mais stalinista que a velha ladainha do ser "melhor errar com o partido do que acertar sem o partido". Errar é ruim sempre, principalmente se estamos falando de luta de classes e seus princípios. A fala de Zinoviev no XII Congresso do PCUS (1923), endereçada à Oposição Operária (que tinha Alexandra Kollontai dentre as lideranças, ela que depois se rendeu ao stalinismo), é sintomática:

"Toda a crítica à linha partidária", exclamava Zinoviev, "até mesmo uma chamada crítica 'de esquerda' é agora, objetivamente, uma crítica menchevique". (apud Isaac Deutscher, "Trotski- o profeta desarmado", Civilização Brasileira, 2005, p.129)

"Toda a crítica" é vetada. Mas, marxismo, o marxismo de tantas críticas -da Filosofia do Direito de Hegel, do Programa de Gotha, da "crítica da crítica" ("A Sagrada Família")- sem... críticas? O mesmo Zinoviev foi vítima do monstro que ajudou a gestar.

Trotsky possui uma fala parecida, no XIII Congresso (1924):

Camaradas, nenhum de nós quer -ou pode- estar certo contra o Partido. Em última análise, o Partido está sempre certo, porque o Partido é o único instrumento de que a classe operária dispõe para a solução de suas tarefas fundamentais (...) Eu sei que não se pode estar certo contra o Partido (...) pois a história não criou outro modo de determinar uma posição correta.

Uma fala desse jaez, na boca de Trotsky, contudo, deve ser contextualizada, mormente à luz da luta interna do período, quando a campanha antitrotskysta era mais e mais estimulada. Ao invés de enxergar nesse discurso o "supremo ato de autodegradação masoquista de um fanático", como fazem os "exegetas direitistas", Carlos Eduardo Rebello de Mendonça ("Trotsky diante do socialismo real", FGV, 2010, p. 98) o interpreta como uma "resposta velada" a Stálin, um desafio, uma ironia, que não passou em branco, a ponto do mesmo comentar que o discurso se tratava de "uma tentativa de nos ridicularizar". E eis a Oposição firme, dessa vez Unificada, na última tentativa de resistência interna à degeneração stalinista.

Sigamos. Não se pode, de um ponto de vista marxista e leninista, deixar de repudiar esses "vetos às críticas" dentro de um partido que se pretende revolucionário. Esse engessamento, contudo, é próprio do formato degenerado; o erro dos anarquistas e comunistas "de esquerda" é confundir a exceção com a regra. Rudolf Rocker, ao opor os sovietes ao bolcheviques, diz o seguinte:

Hostis a qualquer iniciativa vinda do próprio povo, [os bolcheviques] destruíram as forças construtivas da Revolução, que surgem das massas. Assim nasceu inevitavelmente essa monstruosa burocracia, nas poeirentas oficinas onde sufocaram as últimas chamas da vontade revolucionária. ("Antologia do socialismo libertário", Mundo Livre, 1979, p. 17)

O anarquista alemão coloca a situação escrita acima como algo inerente ao bolchevismo.

Todavia, mesmo quando generalizam, acabam por ajudar. Quando dizem que os leninistas somos autoritários, acabam por nos forçar a provar, pelo exemplo, que não somos; assim, reforçamos o nosso centralismo democrático. Os "esquerdistas infantis" acabam por ser a "voz da consciência", histriônicos, decerto, mas dizendo coisas que, em essência, possuem um tanto de razão: que o Partido não pode se sobrepor à classe, que a tomada do Estado, mesmo que para erguê-lo em um Estado Operário, pode levar à degeneração da revolução etc. Devemos ouvir essas críticas e deixar o sinal amarelo ligado. Não se pode "relaxar".

Todos esses riscos, porém, para nós -os leninistas- são inafastáveis. Os anarquistas e comunistas "de esquerda" querem saltar para a etapa final, o comunismo. Nós entendemos que há toda a transição, inevitável. Eles, em suas elucubrações, já chegaram lá. Nós entendemos que há um caminho a construir. Os "pecados" do bolchevismo estão ligados à construção do caminho. Não construíssemos, não pecaríamos; mas tampouco chegaremos "lá"...

Anton Pannekoek, o grande nome do "comunismo de conselhos", em sua carta à Socialisme ou Barbarie, na qual diz orgulhosamente que os conselhistas sempre se mantiveram "fora da estrada trotskysta", por considerarem Trotsky o mais hábil porta-voz do bolchevismo, concorda que a grande tarefa deles -dos conselhistas- é

(...) essentially theoretical: to find and indicate, through study and discussion, the best path of action for the working class.

Indicar através de estudo e discussão! Essencialmente teórica!

Realmente, assim há risco zero de degeneração autoritária.

O mesmo Pannekoek, em outro texto (aqui), diz que o inimigo de classe não pode ser convencido; não se deve gastar saliva com a burguesia, pois o melhor dos argumentos não pode demovê-la. Não é uma questão de argumentos, afinal de contas, e sim de interesses materiais, e quando falamos em luta de classes não é mero expediente retórico. Está correto: o diálogo pressupõe duas partes interessadas. A agitação e propaganda são dirigidos aos neutros, aos simpáticos, àqueles que não têm noção das coisas e precisam ser "despertados". Com o inimigo a história é outra. O grande equívoco, aqui, da parte dos leninistas, é considerar os esquerdistas "infantis" também como inimigos. Ao contrário, estão do nosso lado da barricada; o que há são concepções diferentes de como se chegar ao mesmo fim. A crítica feita pelos "esquerdistas" é qualitativamente diferente da feita pela direita, mesmo batendo na mesma tecla (autoritarismo etc.). Além da direita não possuir moral algum para denunciar autoritarismo, sempre, sempre será inimiga de toda e qualquer medida que vise emancipar os trabalhadores, por mais perfeita que seja. A crítica dos esquerdistas "infantis", ao contrário -mesmo que, para nós, de forma equivocada- é do ponto de vista dos trabalhadores. Por isso deve ser bem recebida, apesar de, repito, equivocada e não raro injusta.

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