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quinta-feira, 1 de maio de 2014

No bosque nevado


Os quadrinhos não são, como o leigo costuma rotular, coisa de criança. Ao contrário, são um arte completa, tão completa que é preciso a união de duas para lhes dar vida- a pintura e a literatura. Desenho e argumento. Dessa mistura temos o GIBI, apelido infeliz que remete à publicação infantil de tempos idos.

Quadrinhos, arte e literatura. Li às mancheias na infância, Marvel e DC, Marvel mais poético, dramático até, mas DC me falando mais até hoje à memória afetiva, até hoje uma nostalgia doce. E digo com todas as letras, literalmente, que os quadrinhos ajudaram na minha formação cultural. Os autores mais diversos eram citados, referenciados, comentados. Ilustrados. Percy Shelley, em poema que posso reproduzir de cor -és pálida pela fadiga/ de alçar aos céus, fitando, de Gaia, a fonte/ sempre cambiando, com um olho jocoso etc. etc., não garanto memória tão boa assim, já se vão mais de duas décadas-, como abertura de uma história dos Defensores (os Novos Defensores, com o Gárgula, Nuvem, Andrômeda, Anjo ex-X-men, em uma aventura espacial). Henry Miller, quando eu nem sonhava que Henry Miller se tornaria meu autor favorito, abertura do confronto entre o Homem-Aranha e o Homem-Coisa (cópia pobre do Monstro do Pântano da DC). Lembro-me do trecho de Miller: "o mundo está sempre chorando, o mundo está afogado em lágrimas". A citação, do "Sexus" (ou do "Plexus", não tenho certeza), confunde filósofos. Imaginem o efeito disso em um menino de nove, dez anos de idade. A aventura, do Homem de Ferro contra o Dr. Destino, em Camelot, a Camelot do séc. VI de Rei Arthur e Merlin. Batman e cultos satânicos. Adolescentes problemáticos nos Novos Titãs. O vilão que utilizou cartas de tarô para derrotar a Liga da Justiça!!! E eu, naquela idade, sabia o que era tarô? Passei a saber.

E isso tudo é só uma fração. Havia muito mais. É uma injustiça, como quer que seja, tachar todo essa manancial como "coisa de criança", mas deixo claro que ser "coisa de criança" não é nenhum demérito. Oxalá fôssemos todos como crianças. O que quero dizer é que há uma complexidade, uma riqueza, muito grande aí e, no geral, subestimada.

Frank Castle, o Justiceiro. O matador da Marvel. Sem poderes, apenas fuzil e pistola contra a criminalidade. Politicamente não endosso isso, é claro, mas são apenas quadrinhos; não podemos ser politicamente corretos em tudo. Muito menos quando se é um pré-adolescente. A aventura da qual me recordo é de uma sensibilidade enorme. Castle elimina os inimigos, e vai ao parque soltar pipa. Lembra-se da família, esposa e filhos assassinados por máfias- tragédia que lhe arrastou à cruzada. Solta pipa e come sanduíche, no parque, enquanto seu parceiro, em outra cena, lê um livro de poemas. É possível ler a capa do livro, verde, salvo engano: ROBERT FROST. Até hoje não me esqueço, senhor Frost.

A mata é bela e calma no outono
mas às promessas não dou abandono
tenhos léguas sem fim antes do sono
tenho léguas sem fim antes do sono.

Versos lidos em um gibi há mais de vinte anos ainda hoje lembrados.

A literatura não é mágica?

Já agora, arruinado, melancólico, bêbado. Lanço os versos no Google. Sei que é de Frost, e só conheço o trecho acima, e é um trecho traduzido e adaptado, é certo. Vamos lá. Nada, escuro total. Lancemos um dos versos, em inglês; há que surgir algo parecido. Mata, forest? nada... Outono... autumn! Nada ainda, Frost não surge com nada disso.

Promessas? Tentemos. Promises E Frost. E bingo! O poema aparece.

A literatura não é mágica?

Vinte anos depois, encontrar o poema original. Digam se isso não é mágico, seus parvos!

O poema original: Stopping by Woods on a Snowy Evening. Quase às lágrimas -desculpem, sou "todo coração", como Maiakovsky- boto o poema no meu Tumblr. Mas ainda me parece pouco. Meses depois, ainda leio e releio.

E traduzo. Segue abaixo minha versãozinha, humilde, decerto, mas sincera. Sem rimas, por ora. Concebi mil variantes ("conheço o dono do pedaço" e tals), mas fiquemos assim por enquanto.

Pausa no bosque em noite de neve

Conheço o dono deste bosque.
É morador da vila, porém,
E assim não me verá parado aqui
Observando o bosque se cobrir de neve.

É estranho, meu cavalo deve achar,
Essa pausa sem abrigo próximo.
Entre o bosque e o lago congelado
Do ano a mais escura noite.

Ele chacoalha seus arreios
Como a perguntar se de errado há algo.
O da neve caindo ao vento,
O único som, além desse.

O bosque é amável, profundo e escuro.
Mas tenho promessas a cumprir
E, antes do sono, um longo caminho pela frente
Um longo caminho pela frente.

A minha tradução é mais fiel que a da história do Justiceiro. Ela fala em outono, evocando folhas vermelhas a cair, enquanto o poema original traz um cenário de neve. Mas traduzir é sempre trair e, principalmente em poesia, acho que é a ideia que importa mais. Já li várias interpretações para o poema. Alusão à morte, por exemplo, simbolizada na mata escura e silenciosa com seu apelo magnético, a inclinação suicida motivada pelo desespero ("a mais escura noite do ano"). Eu, pessoalmente, gosto da imagem grandiosa da neve silenciosa no lago congelado, a natureza rude, mas... acolhedora. O bosque aqui está e nos convida ao sono. Contudo, e é essa a lição final do poema, temos promessas a manter; a hora de dormir ainda está distante. Penso no conceito hindu do dharma, da "lei", do dever a ser cumprido.

É tentador. Mas precisamos seguir em frente. O sono fica para depois.
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