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terça-feira, 25 de outubro de 2011

...then the bird said, "nevermore"


Aquela edição era solene: capa preta de couro e detalhes em dourado. Nas contracapas, a imagem soturna de um cemitério, cruzes e lápides em primeiro plano e uma lua cheia encoberta por nuvens ao fundo. Eu ainda era moleque e apesar de já saber ler aquelas letrinhas miúdas tiravam meu interesse, mas gostava de admirar o livro. Morria de medo, claro. E os títulos? "O gato preto", "Os assassinatos da Rua Morgue", "Nunca aposte sua cabeça com o diabo"... Largava correndo e ia pra perto da família.

Foi só na adolescência que parei realmente para ler Edgar Allan Poe. A mesma edição, aliás; tenho-a até hoje, surrada, é verdade. Foi a tarde em que li "O escaravelho de ouro". Aquele quase-sobrenatural me fascinou, mais ainda quando entraram na história matemática, piratas e...caças ao tesouro! Para acompanhar o raciocínio dos protagonistas, precisei pegar papel e caneta para reproduzir a decodificação dos mapas do Capitão Kidd. Um verdadeiro filme de suspense, que fala ao intelecto. Depois deste vieram os demais contos, devorados um a um, e geralmente -quando o protagonista era Dupin- acompanhados com papel e caneta, para tentar -e só tentar- seguir o narrador na descoberta do enigma.

É de Poe, n'"Os assassinatos da Rua Morgue", uma das observações mais argutas que já vi sobre "inteligência". É a comparação que faz entre o enxadrista e o jogador de damas. O xadrez é um jogo muito mais complexo. Repleto de peças diferentes (seis), cada qual com movimentos e peculiaridades próprios. A quantidade de opções de jogadas é inimaginável. O jogo de damas, por sua vez, à primeira vista é simplório: passatempo de crianças, com suas jogadas limitadas e pouquíssimas variações. Mas é nele, diz Poe, que a verdadeira inteligência se revela: justamente pelas opções reduzidas, é que o jogador de damas é mais astuto, mais sagaz, que o enxadrista com todo seu rebuscamento. Sabemos disso: quanto menos ferramentas à disposição, mais apelamos à concentração e à criatividade.

Poe teve um fã célebre no outro lado do Atlântico, Charles Baudelaire, que o traduziu para os europeus. Aqui entre nós teve versos, pois Poe também era poeta -e "Poe" e "poeta" foi um jogo de palavras ao acaso- traduzidos por Machado de Assis. Como nesta versão d'"O Corvo" (The Raven), clássico da poesia gótica:

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará jamais.

Íntegra da tradução aqui. No original, aqui.

O "nunca mais" (nevermore) do Corvo repetido monotonamente é fúnebre. Só um gênio para bolar uma coisa dessas. Até hoje pretendo ter um busto de Atena (Palas, Minerva para os romanos) na estante, como no poema. Mesmo que o Corvo sombrio queira se empoleirar ali também.

E pra concluir: Auguste Dupin dá de 1000 em Sherlock Holmes. Sempre achei.

1 comentários:

Marla disse...

Simplesmente genial...

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