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quarta-feira, 2 de maio de 2012

Teoria para a prática


Na seção "textos indicados" disponibilizo, dentro outros, um escrito pelo juiz federal cearense George Marmelstein Lima, sobre como o espírito inventivo acaba amordaçado pelas convenções acadêmicas. A intenção é falar, discutir, desafiar; mas a forma, maldita seja, as convenções cerceiam tudo isso, e acabamos cordeiros desejosos de agradar à banca e ao orientador. Há todo um formato preestabelecido que deve ser obedecido, mesmo que isso signifique o sacrifício da criatividade e da originalidade- do pensamento livre, enfim. Experimentem, em um concurso ou prova, dizer o oposto do que os professores doutores da banca dizem. Serão fulminados pela heresia. Isso não quer dizer que vocês estejam errados, cientificamente falando; o erro foi não seguir a cartilha. É por isso que, no geral, sou partidário do princípio de que "prova não prova nada", e concordo quando Clóvis Beviláqua diz (aqui se referindo especificamente ao ensino do Direito) que "o que se deve apurar na educação jurídica não é a expansão cerebral, e sim a fortaleza de espírito, a resistência do caráter", e também com Lênio Streck (aqui), igualmente sobre o ensino jurídico, ao dizer que em seu "mundo ideal"

(...) não mais será necessário decorar a Constituição e os Códigos para fazer concurso; as perguntas, no novo regime, buscarão detectar efetivamente o que os candidatos sabem; também o Exame de Ordem não trará mais perguntas que somente o argüidor saiba ou baseadas no único livro que o argüidor leu ou conhece.

No jargão bíblico: a letra mata, o espírito vivifica. Mas a criatividade, como se vê, dá lugar ao argumento de mediocridade autoridade.

Spencer diz que a meta da educação é a ação; aprendemos para aplicar à vida cotidiana. Por isso não vejo sentido quando o aspecto puramente acadêmico das coisas adquire a relevância que tem. É compreensível que determinados ramos do conhecimento fiquem restritos à estrita especulação, como, digamos, a astrofísica (pela dificuldade de demonstração concreta de seus cálculos, impossibilidade de aplicação prática etc.), mas isso é inadmissível nas ciências ditas sociais ou humanas- o Direito inclusive, com a ressalva do entendimento de Eros Grau sobre o Direito não ser uma ciência, mas o objeto de ciências, discussão que aqui não tem relevância. A undécima tese sobre Feuerbach não poderia ser mais clara: perdemos muito tempo interpretando o mundo, quando o que é mister é transformá-lo.

Claro: para transformar algo é preciso compreender esse algo. Sem teoria não há prática; é uma interrelação dialética. O estudo é imprescindível, e por isso Lessa está certo quando se manifesta contra o praticismo "revolucionário" (aqui), o agir mecanizado dos zumbis que obedecem sem crítica as ordens do "guia genial". Mas é um estudo que não é um fim em si, e sim um estudo que só se realiza na vida cotidiana. Daí a superioridade do materialismo de Marx, que chama à ação, sobre o materialismo contemplativo (conformista, pusilânime) de Feuerbach.

O "marxismo ocidental" é expressão desse desvio, mesmo que algo inconscientemente; é produto da derrota, como diz Perry Anderson, o resultado palpável da falência do stalinismo. A revolução não veio e deu lugar à decepção e à desilusão. Daí temos o marxismo mudando de enfoque, dos partidos para as universidades, da política para a filosofia:

Como afirma Anderson, uma série de características define e delimita o "marxismo ocidental" como uma tradição integrada. A fundamental é o progressivo e lento distanciamento entre este marxismo e a prática política. A unidade orgânica entre prática e teoria, característica da geração clássica de marxistas, que desempenhou uma função intelectual e orgânica e política dentro de seus respectivos partidos, iria perder-se pouco a pouco (...) (apud Javier Amadeo, "Mapeando o marxismo", in "A teoria marxista hoje", Buenos Aires: CLACSO, 2006)

Sendo uma filosofia da práxis, como o chamou Gramsci, causa portanto surpresa que o marxismo seja relegado aos livros por ditos marxistas. Penso que, ao contrário dos católicos, não se pode ser "comunista não-praticante". O entendimento de que a sociedade é fracionada em classes e que a realização do ser humano requer a superação cabal do atual sistema econômico exige um posicionamento militante, um engajamento cotidiano. Ser neutro na luta de classes, ou ter um lado e não mexer uma palha, dá no mesmo: na verdade, se está do lado dos grupos dominantes.

Sim, é mais fácil xingar muito nos grupos de discussão da internet, de preferência com um belo avatar "revolucionário" (algo soviético de preferência, porque é muito mais cool; se usar um nick em alfabeto cirílico, melhor ainda). Mas isso não serve para rigorosamente nada. O sofá-ativismo, esse belo fenômeno pós-moderno. Mubarak no Egito não caiu por causa da garotada no Twitter, mas pela tensão concreta na Praça Tahrir, sob cerco militar. Não se trata de desprezar uma ferramenta, a web -o leninismo ao contrário nos ensina a utilizar todas as ferramentas- mas de dar a ela o devido lugar. Os tímidos e pusilânimes podem continuar sua militância virtual; mas, lamento dizer, luta de classes é luta não por mera expressão retórica.

Trotsky, atento a isso, já dizia no "Programa de Transição":

Aquele que não procura nem encontra o caminho do movimento de massas não é um combatente, mas um peso morto para o Partido. Um programa não é criado para uma redação, uma sala de leitura ou um clube de discussão, mas para a ação revolucionária de milhões de homens.

Como tudo na vida, do marxismo ao Direito. O aprendizado só faz sentido se tiver por objetivo a inserção na vida concreta; o estudo nos municia de armas para agir. Saber e fazer, um sem o outro é como tentar voar com uma asa só.

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