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sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

De socialismos de mercado


Joycemar Tejo
janeiro de 2013

Por que insistir em que façamos uma análise não-binária do mundo? Porque a forma mais fácil de encarar a vida é se deixar levar pela aparência, pelo apresentado, pelo dado. Mas o fácil não é sinônimo de acertado; muito pelo contrário, a realidade é complexa, sinuosa, não-linear. É dialética, em outras palavras.

O intróito é necessário porque este post -o primeiro do ano- tem como tema a China. Pois a China tem sido abordada sob uma ótica simplista, que ilude tanto a direita quanto a esquerda: essa ótica simplista que dá ao país a caracterização de "comunista". E por que não seria comunista, se é uma autodenominada "república popular" e tem um PC no poder? Ocorre que nem a autodenominação nem o bloco no poder -a "aparência"- bastam para configurar a "essência" de dada experiência. É esse o ponto.

A prática, que é o critério da verdade, não permite mais a aceitação de abordagens ingênuas (ou oportunistas). A China, país-chave da economia capitalista contemporânea (aqui, aqui), a China dos elogios rasgados do FMI (aqui), não é socialista -muito menos comunista, que é outra coisa, apesar da confusão rotineira na grande mídia- nem aqui nem... na China. Penso que não há necessidade de repisar isso. Das organizações da IV Internacional aos maoístas (que é o stalinismo "de esquerda"), suposto caráter socialista da China de hoje é defendido apenas pelo revisio/oportunismo mais crasso. Ou pelas "polianas do marxismo", mas o marxismo, que requer que se olhe a realidade de frente, como diz Trotsky no Programa de Transição, não combina com ingênuos.

Jornal "O Globo", de 01/ 01/ 2013. Começamos o ano com a matéria "Acadêmicos pedem democracia na China" (versão on line aqui). O texto trata do manifesto, assinado por 73 intelectuais e personalidades, advertindo "a liderança chinesa do risco de uma 'violenta revolução' se o governo não responder às pressões públicas e deixar de realizar reformas políticas há muito bloqueadas". O regime às portas de uma revolução. Mas uma revolução com que propósito? A matéria prossegue: "Os acadêmicos alertam o governo - controlado desde 1949 pelo PCC - a impulsionar a democracia e a independência do Judiciário, além de aprofundar as reformas em direção à economia de mercado". Os dois primeiros itens, tudo bem. É preciso democracia, mas qual? Decerto não a burguesa, excludente e hipócrita. Mas mesmo essa democracia burguesa, por mais que se esgote no aspecto puramente formal, já é alguma coisa. A primeira dimensão de direitos humanos -as liberdades clássicas de matriz liberal/ iluminista- foi conquistada à força do Antigo Regime absolutista. Não é para ser jogada fora, antes, é patrimônio da evolução humana. A independência do Judiciário também é uma reivindicação legítima. A separação de Poderes é um conceito burilado há séculos- já está em Platão e Aristóteles. Não se chegou a um formato melhor; também o Estado socialista, enquanto for Estado -pois o socialismo tem a transitoriedade em sua essência, é o "período político de transição" ("Crítica do Programa de Gotha") entre a sociedade capitalista e a comunista- deve manter a independência entre os Poderes do Estado e as funções correspondentes. É verdade que quando os chineses, na plataforma, se referem a "independência", falam mais do aspecto político/ material que do formal: toda ditadura -não que seja o caso da China, mas também não que não seja- fala em respeito às instituições e ao Direito, e ao menos formalmente isso é observado. Mas são faces da mesma moeda: o Poder que é formalmente manietado não será -ou o será com dificuldade- independente político/materialmente.

Mais democracia -com as ressalvas acima- e um Judiciário independente, ok. Até aí tudo bem. Mas o bicho pega na reivindicação seguinte: "aprofundar as reformas em direção à economia de mercado". Se ainda vai em direção, quer dizer que ainda não é? E eis as polianas felizes, porque a China socialista resiste bravamente.

Antes de mais nada, veja-se que "aprofundar" significa dar seguimento a algo já em curso. Esquece-se que a perestroika chinesa é anterior à de Gorbachev, desde o final dos anos 70 com a ascensão do grupo de Deng Xiaoping, aquele que considerava investimentos capitalistas estrangeiros como "indispensáveis" para o socialismo chinês ("Building Socialism with a Specifically Chinese Character", aqui). A conciliação de classes, em verdade, sempre fez parte da experiência chinesa- não é por acaso que a burguesia capitalista se encontra representada na própria bandeira do país (aqui). Afinal, a "Nova Democracia" é aquela na qual "o proletariado, os camponeses, a intelectualidade e outros elementos pequeno-burgueses da China são as forças básicas que determinam o destino do país", aquela cujo governo "não confiscará a restante propriedade privada capitalista, nem restringirá o desenvolvimento da produção capitalista" ("A Nova Democracia na China", 1940, aqui).

Sobre isso, bem como sobre a absoluta impropriedade que é comparar esse modus operandi com a NEP soviética, me reporto a este post do blog, principalmente seus pontos 5 e 6.

Sigamos. Aprofundar reformas em direção à economia de mercado significa que nem tudo na China é economia de mercado. Mas não ser totalmente capitalista não significa ser socialista. Também isso já foi falado no blog (aqui), e faço uma autocitação:

Penso que não existem sistemas de produção perfeitos, acabados ou, melhor dizendo, "puros". Elementos de sistemas diversos podem coexistir, sem que o principal seja desnaturado; o exemplo clássico é a NEP russa (socialismo com fortes elementos de economia de mercado), e, também como exemplo, a servidão feudal na Europa oriental ainda no séc. XIX, o que não autorizaria ninguém a dizer que o feudalismo era a forma dominante no séc. XIX. Da mesma maneira, o paradigma capitalista clássico -tomando como parâmetro as construções teóricas liberais, a "mão invisível" de Adam Smith etc.- vai rejeitar a participação do Estado na economia. Mas nenhum capitalismo, até hoje -nem mesmo o formato neoliberal, que também não prescinde do Estado, por mais que seus defensores jurem o contrário- ficou isento de ações governamentais, mais ou menos fortes, mas sempre presentes. Contudo, ninguém ousaria dizer, mesmo diante do mais sólido Welfare State, que não se trata de uma economia capitalista.

Não há sistema de produção "puro", "perfeito". Elementos diversos podem coexistir -e a História mostra que sempre coexistiram- sem que o principal seja desnaturado. Mas, repito, há o principal- a forma dominante. Na China não observamos a predominância socialista; há elementos, decerto -um Estado forte (o que por si só não é grande coisa, e a crítica marxiana é clara ao lembrar que "estatizar" não é "socializar"), formas comunais etc.- mas se perdem ou, no máximo, disputam com os elementos capitalistas. Teríamos então uma forma híbrida, mista, um "capitosocialismo" ou "sociocapítalismo". Ocorre que não se pode ser nem uma coisa nem outra, "meio barro meio tijolo". Neutralidade aqui (estamos falando em sistemas, ou regimes, de produção) não existe. Em um mundo em que o capitalismo é a força dominante, a disputa "meio a meio" -considerando que seja uma disputa e não a conciliação fomentada pelo próprio círculo dirigente desde os albores da experiência chinesa, como se viu- só pode ter uma consequência: a inclinação da balança para o lado capitalista e a redução, cada vez mais intensa, dos restantes elementos socialistas.

A inclinação da balança já se deu: o diagnóstico adequado não pode ser outro senão a China como um capitalismo com elementos de socialismo.

Essa caracterização coloca as coisas em seu devido lugar.

Tais elementos de socialismo, ainda existentes, não são suficientes para que se crie ilusões. Não seria absurdo dizer que até o Brasil possui elementos de matiz socialista. Por exemplo, há uma defensoria pública franqueada à população (art. 134, CRFB/ 88), há uma seguridade social (art. 194, idem), há a saúde como direito de todos e dever do Estado (art. 196, idem), o mesmo para a educação (art. 205); há a defesa do meio ambiente e o fomento à cultura, ao esporte e à ciência (arts. 225, 215, 217 e 218, respectivamente); e por aí vai. Mas isso evidentemente não autoriza que se enxergue um "socialismo de características brasileiras". Todo esse rol de situações faz parte dos direitos fundamentais (ou humanos) de 2ª e 3ª dimensões, e estão incorporados aos ordenamentos jurídicos de qualquer Estado contemporâneo, em maior ou menor grau. Tiveram origem nas lutas de massas -os direitos não caem do céu- mas isso não basta para se caracterizar um socialismo. Não há socialismo sem tais direitos fundamentais (inclusive os direitos de 1ª dimensão, as liberdades clássicas das quais falamos acima); mas, se não temos uma economia socializada sob o governo dos trabalhadores, não se pode falar em socialismo. Mesmo que em seu bojo os direitos sociais e de solidariedade sejam respeitados ao máximo (e nunca são), O Estado social-democrata é, e sempre será, capitalista.

Agora, vejamos: os direitos sociais e de solidariedade citados acima são, como dito, fruto de luta, consistindo em avanço substancial da classe trabalhadora ao redor do mundo. Por isso, devemos repelir toda e qualquer medida que tente suprimir ou mesmo relativizar tais direitos. É o exemplo das contrarreformas do lulodilmismo, a da previdência -já realizada- e a trabalhista, em andamento. Combater essas contrarreformas não significa defender o "socialismo brasileiro" -que está longe de existir- e sim de defender direitos sociais e de solidariedade existentes dentro do capitalismo brasileiro.

O mesmo vale para a China.

Reparem no terceiro item da aludida plataforma: "aprofundar as reformas em direção à economia de mercado". Não basta à burguesia mundial uma China capitalista; é preciso que os parcos traços socialistas sejam extirpados. Como nas contrarreformas no Brasil. Direitos históricos conquistados a ferro e fogo sendo suprimidos. A posição marxista revolucionária, nesse cenário, só pode ser uma: o da defesa incondicional de tais direitos. Como no caso brasileiro, não se trata de defender o "socialismo chinês", e sim de defender conquistas sociais dentro do capitalismo chinês. Não cabe confusão alguma aqui.

Qual a lição de Trotsky a respeito?

Aqueles que são incapazes de defender as conquistas já obtidas, nunca poderão lutar por novas.

"Carta aos Trabalhadores da URSS", 1940. Em inglês, aqui.

É exatamente disto que se trata: devemos lutar na defesa dos direitos sociais e de solidariedade, em qualquer parte do mundo em que se encontrem sob ameaça- seja nas "democracias liberais" do Ocidente, seja nos Estados fascistas, seja... no capitalismo com resquícios de socialismo chinês. Não devemos permitir que mesmo esses resquícios desapareçam.

Em conclusão, fica claro que o cenário na China é diferente do cenário nos Estados Operários degenerados. Nestes, a ameaça de restauração capitalista pela burocracia é um perigo iminente, mas reversível- através da revolução social (e não econômica, porque a economia já é socialista) capitaneada pela classe trabalhadora contra a burocracia restauracionista (redundância, porque o restauracionismo é inerente, cedo ou tarde, à burocracia). Na China a restauração já se deu- se é que houve propriamente um socialismo, em face do reiterado conciliacionismo já falado. A tarefa na China, portanto, não consiste na defesa de seu "socialismo" -não mais real que um brasileiro- e sim dos elementos sociais remanescentes.

2 comentários:

AF Sturt Silva disse...

Eu concordo com seu texto.

"A inclinação da balança já se deu: o diagnóstico adequado não pode ser outro senão a China como um capitalismo com elementos de socialismo." Não seria elementos de um processo transitório ao socialismo?

Os Estados Operários degenerados, quem seria eles? URSS sob comando de Stálin? Cuba de hoje em dia?

Só mais uma questão:

O que percebo é que hoje em dia apesar da crise que temos, capitalismo/capital são hegêmonicos como nunca foram na história da humanidade. Há capitalismo globalizado financeiro, onde o "liberalismo econômico" é a receita para qual quer crise e o estado é defendido apenas para proteger os "direitos" dos capitalistas em nívies nacionas, já que a nível internacional existem as "internacionais do capital",etc...

Ou seja, a classe dominante capitalista, a burguesia, é internacional. Não se admite mais projetos burgueses nacionalistas ( não estou falando aqui de nacionalismo revolucionário como o caso do "chavismo"). Prova disso é toda campanha contra o regime do Irã, que tem como objetivo a criação de uma burguesia nacional, tutelada pelo estado iraniano.

Claro que a China tem uma história socialista, logo tem elementos socialistas, mas a presença de um estado forte, logo o aparecimento de uma burguesia, ou até mesmo de um capitalismo estatal - que não aparece no seu texto - que tenha projetos alternativos ao capitalismo global financeiro já é condenado hoje em dia pela classe dominante mundial.

J.L.Tejo disse...

Ah. A pá de cal, se ainda fosse necessária: "O que queremos é deixar o mercado resolver o que ele pode resolver com melhor alocação de recursos; e o Estado, mais profissionalizado, atender ao que o mercado não atende. Estamos na transição do planejamento central para uma economia de mercado socialista". Aqui - http://bit.ly/10HYeCd

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