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quarta-feira, 11 de maio de 2011

Animais urbanos


Tenho falado por aí -Twitter, Facebook etc.- sobre um livro que estou lendo, "Walden" de Henry David Thoreau. Como qualquer pessoa, sou assim: quando algo me agrada, quero partilhar com o mundo. É mesquinho guardar um tesouro só para si (isso mesmo, avareza é pecado capital, amigo). Thoreau não é novidade para mim: em 2006, dediquei uma das primeiras postagens do meu antigo blog a ele. Mas pegar "Walden" (um livrinho fácil, encontrado em qualquer banca de jornal, edição da L&PM) é uma alegria enorme.

Sinto inveja de Thoreau. Nem que seja na pura fantasia. Construir com as próprias mãos uma cabana às margens de um lago, no começo da primavera, quando o degelo ainda está no início...Isso tem um efeito inexplicável sobre um sujeito urbano como eu, morador de uma cidade quente e caótica. É um chamado à SIMPLICIDADE, em maiúsculas mesmo, uma vida simples e singela- e mais verdadeira.

E nós aqui na selva de pedra. Buzinas estridentes dos carros e roncos de motores. Trânsito engasgado: o sinal está quebrado. Guardas neuróticos, empurra-empurra. A carteira de alguém foi levada. O trombadinha passou voando. Uma liquidação é anunciada em altos decibéis, as vitrines de lojas poluindo a vista. Jogaram papel de bala no chão. Mais o copinho de mate e a latinha de cerveja, temos um lixão em miniatura se amontoando em plena via pública. E também o cocô de cachorro e o mamão esmagado, e outras frutas podres, resquício da feira de hoje cedo. Fedor. Buzinas estridentes dos carros e roncos de motores, sim, já disse isso, é que a ciranda não para. Ad eternum ad nauseam.

Ei, Thoreau, tem lugar para mim na sua cabana?

Mas, cá entre nós, não sei se me adaptaria. O fato é que pertenço à concrete jungle.

Vamos buscar o equilíbrio, então: uma estação no lago de Thoreau, outra no meu Rio de Janeiro. Ou nas cidades invisíveis de Ítalo Calvino. Aproveitando o melhor de cada experiência.

Falar em cidades, e Henry Miller e Nova Iorque? Eu prefiro o "Trópico de Câncer", que narra o período parisiense. Lá Miller é um semi-mendigo, passando frio e fome, se arranjando como dá. Mas é o nova-iorquino "Trópico de Capricórnio" o mais visceral dos "trópicos". É doméstico, caseiro mesmo (com tantas lembranças de infância, pais e tios) mas cáustico ao extremo. Miller não poupa seus conterrâneos. A parte em que diz que "queria ver a América arrasada de alto a baixo, exclusivamente por vingança", se fosse escrita no pós-11 de Setembro, horrorizaria os ianques. Daria até cana, talvez. Mas Miller -e isso é um mérito indiscutível- sempre horrorizou os conservadores, e não é por outro motivo que reiteradamente teve suas obras censuradas em sua terra natal.

Miller é um escritor urbano, apesar do período nas montanhas da Califórnia, narrado em "Big Sur e as Laranjas de Hieronymus Bosch" (Jerônimo Bosch? What the hell?, que mania horrível de traduzir nomes). Aliás, meu exemplar do "Trópico de Capricórnio" (edição Círculo do Livro) é urbano desde a capa: é noite, ao fundo as janelas iluminadas dos prédios, e dois vultos na cama em primeiro plano.

Bem, agora vou dizer exatamente por que a vida na cidade grande me atrai: é a riqueza humana, no sentido da diversidade. Pensem nisto: cada janela iluminada de prédio é um mundo. O vizinho pode ser um poeta, um músico, um geômetra. Um pagão, um hare krishna- ou um materialista. Esse pluralismo, essa diversidade, é fascinante. E apenas a vida em cidade grande nos coloca em contato tão próximo, pessoas diferentes que somos.

(Mas claro que nem sempre funciona assim. Podemos ser completos desconhecidos para nossos vizinhos. Chegar e sair sem sequer um "bom dia", sem sequer olhar no rosto. Desse jeito, tanto faz morar na cidade grande quanto no Saara).

O ser humano é gregário: precisa do outro. Quando meu amigo Alexandre vinha com um papo individualista, tipo "não preciso de ninguém", eu rebatia: "cuidado, Alexandre, estamos sempre precisando do outro...Para nascer precisamos do médico, para crescermos com saúde, que nossos pais cuidem de nós, para aprender, que professores nos ensinem...", ao que o Maurício acrescentava, "para comer alguém, que uma mulher nos dê..."

É esse o grande mérito da cidade grande: juntar pessoas. É por isso que, apesar de tudo, ainda prefiro as cidades. Animal urbano, eu disse.

Claro, o lado chato acompanha. O cocô de cachorro e o buzinaço vêm no pacote.

6 comentários:

Breno Corrêa disse...

Por incrível que pareça, hoje entrando em um dos cartórios do Fórum de RP deparei-me com dois serventuários conversando:

- Com vizinho meu é só 'bom dia' e 'boa noite'
- Eu tbm, só converso o mínimo do mínimo.

Fiquei a pensar sobre o motivo dessa antissociabilidade. E é pelo mesmo motivo que muitos sentem-se tão sós mesmo em cidades com alta densidade populacional. Estão trancados dentro de si mesmos.

Eu também me aventuro. E tenho vizinhos fantásticos.

Seu post retrata uma das coisas mais legais dessa vida: surpreender-se com o mundo do próximo.

Fernando Rodrigues Felix disse...

Ótima postagem!

Anna Antunes disse...

A diversidade é algo misterioso...mexe com o imaginário e isso é simplesmente fabuloso - pelo menos aos que se aventuram na expedição rumo a "riqueza humana"...eu me aventuro e você?

Breno Corrêa disse...

Bom, graças ao Google, la vamos nós novamente:
Havia dito que no dia em que li esse post curiosamente por acaso ouvi parte de uma conversa de serventuários da justiça, mais ou menos assim:

- Com meu vizinho é 'bom dia' e 'boa noite'
- Comigo tbm, só converso o necessário

Achei intrigante porque essa ojeriza pelo que entendi não teve razão plausível, uma antissocialbilidade sem motivo, típica do liberalismo moderno, da frieza social que nos cerca, diametralmente oposta à sua mensagem neste post.

Ao mesmo tempo que vivemos em cidades com grande densidade populacional, reclamamos da solidão.

Isso me lembrou uma musica, 'Silêncio na multidão', do Cidadão Instigado.

Vanna disse...

É estranho mesmo esse sentimento d solidão em meio a multidão na cidade. Ela diz mais sobre não saber ter gente próximas ou desejar muito a companhia d um só.
Veja q curioso. Vc citou tipos característico do teu cotidiano. Do meu lado se olho as pessoas são tão iguais. Perdidos e escondidos e sendo felizes d mentirinha pq suas verdades não são d poesia, não são musicais.
Bjs

LoucaDeMente disse...

Adorei a reflexão!

beijocas-intrigadas ;)

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