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sábado, 19 de novembro de 2011

Questão de interpretação


Os direitos humanos (ou direitos fundamentais, ou direitos públicos subjetivos etc., haja vista a ausência de consenso sobre o termo) são conquistas da Humanidade que vieram em ciclos, ondas, as quais chamamos dimensões ("gerações", num entendimento já superado). Cada ciclo (dimensão) está relacionado a lutas históricas, em dado momento histórico.

A 1ª dimensão de direitos humanos trouxe as chamadas "liberdades clássicas"- de pensamento, culto, expressão, física também, naturalmente, contra os arbítrios da autoridade. Teve inspiração liberal, sendo gestada nas lutas burguesas contra o Antigo Regime absolutista. A burguesia também foi revolucionária, ora essas: Independência Norte-americana, Revolução Francesa. Ao lado do iluminismo como influência dessa primeira dimensão de direitos, os autores incluem também o cristianismo. Não o cristianismo de final do séc. XVIII, de um clero conservador e apoiador da monarquia absoluta, mas o cristianismo primitivo, emancipador e igualitário, dos primeiros apóstolos. Mas encontro em José Afonso da Silva ("Curso de Direito Constitucional Positivo") uma citação de Pérez Nuño, a lembrar que há "quem afirme que o cristianismo não supôs uma mensagem de liberdade, mas, especialmente, uma aceitação conformista do fato da escravidão humana".

O grifo é meu. Ópio do povo!

Pausa para a reflexão. Levanto os olhos para a estante de livros e, ao lado do Corão, vejo a Bíblia. Edição metodista- capa elegante em vinho escuro e detalhes dourados. Pego-a e vou ao trecho que me interessa, Gálatas 03, 28: "não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea". Mas essa não é justamente uma fórmula libertária, de igualdade entre os homens? E Romanos 10, 12? "Não há diferença entre judeu e grego". Isso é progressista. Melhor que o helênico Eurípides (cit. p. Garaudy) dizendo que "os gregos nasceram para a liberdade e os bárbaros para a escravidão". Como dizer que essa doutrina -o cristianismo- serve apenas de aceitação conformista das misérias humanas?

Mas, vejamos. Outro trecho bíblico. Desta vez de Efésios 06, 05: "Vós, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne, com temor e tremor". Hum. Aqui a coisa desanda: escravos, submetam-se, o comando não podia ser mais claro. E Tito (02, 09) é ainda pior: "Exorta os servos a que se sujeitem a seus senhores, e em tudo agradem". Eis aí: submetam-se!

Vamos colocar a coisa em outros termos. A piada do "meio cheio" do otimista ser "meio vazio" para o pessimista é brilhante. Mostra que diante da mesma realidade objetiva podemos ter as interpretações mais diversas. É a frase de Picasso, sobre como se podemos pintar os mais diferentes quadros sobre a mesma coisa, é porque não há uma única verdade; a verdade é a dos olhos do pintor, por sua vez diferente da dos demais. Emancipação ou resignação, o cristianismo? Interprete como preferir.

Recomendar que os recém-convertidos ao cristianismo não se rebelem não pode ser uma tática, um subterfúgio diante do sistema para evitar atrair desde já a atenção das autoridades sobre o jovem culto? Questão de autopreservação, talvez. Enxergar numa manobra tática um chamado ao conformismo com a situação de escravo nada mais é que...questão de interpretação. Em qualquer caso, estando o cristianismo inserido em um contexto histórico e cultural, não poderia se libertar do mesmo (afinal, como diz Marx, é a vida que determina a consciência e não o contrário). A sociedade sendo escravista, o cristianismo não poderia pular para além da realidade objetiva vigente, mas, e vejam a beleza nisso, o mesmo cristianismo que pede aos escravos que não se rebelem diz que "não há servo nem livre": todos são iguais perante a divindade.

Não entro no aspecto teológico da coisa. Meu método é o materialista dialético. Falo do cristianismo, portanto, como produto superestrutural condicionado pelas inflexões da base material da sociedade. E, como todo produto superestrutural -não menos que o Direito, a Literatura- a Religião também pode ter, e historicamente tem tido, papel emancipador na epopeia humana. Depende é como é interpretada.

Os reacionários interpretam o cristianismo do jeito deles. Já eu prefiro interpretá-lo de outra forma, prefiro interpretá-lo como Luigi Bordin ("O Marxismo e a Teologia da Libertação"), que nos lembra que

é preciso entender que se pode estar simultaneamente do lado de Cristo e do lado de Marx.

2 comentários:

Breno Corrêa disse...

Como sempre um belo texto.

E como sempre tentando conciliar sua fé inata com seu espírito revolucionário.

Biblia e Corão na estante? Interessante sua dialética.

Anônimo disse...

Caro J. L. Tejo,

Brilhante texto, se possível, queria seu comentário sobre esse meu artigo sobre a questão do Estado, se não for pedir muito. Sou um estudante do marxismo.

http://ocommunard.wordpress.com/2011/11/27/quem-mais-precisa-do-estado-e-o-capital/

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