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domingo, 10 de junho de 2012

A Comissão da Verdade (e a questão da guerrilha)


A Comissão da Verdade veio com um grande oba-oba, ex-presidentes reunidos e toda festa acompanhada pela mídia (aqui). Não é preciso dizer que o espírito "festivo" já mostra a que veio a Comissão, cândida e pacífica, conforme as palavras de seu coordenador Gilson Dipp: "não haverá revanchismo". Justiça é revanchismo, no jargão dos militares e de seus lacaios civis. A tortura deve passar em branco, caso contrário se estará tratando de revanche. Parece enojante; e é. Daí a necessidade urgente de deixar claro à população que o trabalho não se consumou com a instauração da Comissão mas, ao contrário, acaba de começar. É preciso fazer com que ela cumpra a tarefa histórica pendente, não só a apuração mas a punição dos crimes da ditadura. Mesmo porque, juridicamente falando, não se pode conceber que crimes lesa-Humanidade sejam passíveis de "prescrição". Tampouco considerá-los "políticos", e portanto anistiáveis, como na infame decisão do Supremo Tribunal Federal (já falamos disso no blog, aqui).

Há uma coisa importante a se falar. Quando tocamos na tecla da punição dos criminosos do regime, as polianas e os bons moços bradam, "os dois lados têm que ser apurados e punidos!" Dois lados, como se houvesse paridade! Como se o ato de resistência fosse igual ao ato agressor que levou à resistência. Como se meia dúzia, algumas dezenas que sejam, de "guerrilheiros", em sua maioria jovens estudantes de classe média -cordeiros em pele de lobo, como a turma do Inverta (PCML) acertadamente definiu, em "O enigma da Esfinge"- tivesse o mesmo potencial destruidor da máquina estatal e suas forças armadas, auxiliadas pela CIA e todo o know how do imperialismo mundial. Os dois lados! Davi e Golias. Estilingues contra o tanque de guerra. Os quase inócuos foguetes artesanais do Hamas e os bombardeiros de última geração do sionismo israelense, os "dois lados" a serem punidos. Basta que se tenha bom senso para perceber o ridículo disso. A punição, portanto, é contra o agente "público" que assassinou, torturou, estuprou e executou. O "outro lado" já foi punido, com o assassinato, a tortura, o estupro e a execução.

Eu acho que não é preciso "fazer justiça" aos jovens guerrilheiros, no sentido de relembrar sua bravura. A própria descrição da tarefa, estudantes pegando em armas para combater uma ditadura militar, já mostra sua grandiosidade. Não sei se a juventude de hoje teria coragem, não sei se EU teria coragem. Na postagem cujo link indiquei acima falo o quanto é fácil vituperar no conforto da poltrona do computador. Mas quando se encara a tortura, o ferro em brasa, o choque no saco e o pau-de-arara... Ou a cadeira-do-dragão... E que tal o empalamento com o cabo de vassoura? O mais valente dos "militantes de sofá" se arrepia de imaginar. E os companheiros que, nos anos 60 e 70 pegaram em armas apesar do terror, são mais que heroicos. Não é preciso repisar isso. O que é preciso, porém, é dizer o seguinte: eles se equivocaram quanto à tática.

Antes de tudo, é preciso lembrar: sem o povo não se faz nada. Se não se derruba uma ditadura sem o povo, que dirá fazer a revolução socialista, e é certo que os companheiros da luta armada tinham a revolução socialista por objetivo, como a Liga Bolchevique Internacionalista reiteradamente frisa (aqui, por exemplo). E a luta de guerrilhas, inclusive na versão foquista (isto é, guevarista), prescinde do povo: um grupo de combatentes isolados no mato tentando construir a nova sociedade. Vimos as consequências disso: na Bolívia, Che delatado pelos próprios camponeses, idem os guerrilheiros na experiência do Araguaia. No Araguaia falou-se em "guerra popular prolongada", a tese maoísta do "cerco da cidade pelo campo". Mas a mesma inadequação tática se verifica. O resultado, heroísmo sem frutos concretos. O martírio vai bem entre os santos cristãos, mas não para revolucionários marxistas, e é por isso que Barrot em sua carta sobre a violência diz rejeitar a autodestruição.

Vou destacar três coisas. Primeiro, quando se critica a luta de guerrilhas, não se quer dizer que a guerrilha, enquanto método de combate -isto é, do ponto de vista estritamente militar- não possa ou, conforme o caso, não deva ser utilizada, em contexto revolucionário. Nem sempre se pode escolher o teatro de operações, principalmente quando se enfrenta forças muito superiores e, como sói acontecer, o imperialismo não economiza esforços quando se trata de sufocar no berço experiências socialistas exitosas. Há guerrilhas, como as FARCs-EP na Colômbia, que nasceram como necessidade de autopreservação de estratos camponeses. A crítica que se faz é à guerrilha enquanto método político, a opção por uma tática vanguardista e afastada das massas. Segundo, o reconhecimento da inadequação do método não quer dizer que não possamos ter genuíno respeito por quem optou por ele, como eu digo acima, dada a carga de abnegação e sacrifício necessária, e pago meu tributo a Ernesto Guevara neste post do antigo blog. Terceiro, quando falo em inadequação de método, não quero dizer, como apressadamente pode parecer, que o método é inadequado por ser estrangeiro, antigo ou qualquer outra característica do tipo. Um método é inadequado quando não produz os resultados que se pretende; quando, feito o balanço ("Balanços e perspectivas", aliás, é o nome de um ótimo trabalho de Leon Trotsky) verifica-se que o saldo é negativo. Que não valeu a pena, que é equivocado. Por que friso isso? Porque o leninismo é estrangeiro e antigo- mas não é inadequado. Ao contrário, foi (é) a ferramenta na qual o marxismo encontrou sua expressão histórica (frase de Trotsky). Por um motivo simples: o leninismo não existe sem povo, sem massa, precisamente, sem o levante da classe trabalhadora. Longe de vanguardismo e elitismos.

Trotsky, em "Porque os marxistas de opõem ao terror individual" (aqui), diz:

Para nós o terror individual é inadmissível precisamente porque apequena o papel das massas em sua própria consciência, as faz aceitar sua impotência e volta seus olhos e esperanças para o grande vingador e libertador que algum dia virá cumprir sua missão.

A construção de uma nova sociedade é impensável sem participação ativa do povo. Não se pode "apequenar" seu papel. É por isso que a guerrilha enquanto método político é um método equivocado.

Voltando ao começo. Mais que uma comissão da verdade, é preciso uma comissão da justiça- caso contrário, aqueles abnegados (mesmo que equivocados) mortos, estuprados e torturados dos anos 60-70 continuarão, em certa medida, insepultos. E, em muitos casos, literalmente.

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