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quinta-feira, 1 de março de 2012

No Céu dos bons ateus


Fazer qualquer coisa sob pressão, sob obrigação, tira um pouco, senão a totalidade, do mérito que eventualmente teríamos por aquela ação. Afinal não foi espontâneo: se agi, foi porque era obrigado a isso- um contrato, uma arma na cabeça, sentimento de culpa etc. Não há o desprendimento, não há conduta desinteressada. O livre-arbítrio acaba tolhido, amesquinhado. Isso não se aplica ao conceito hindu do dharma, tal como o compreendo em minha ótica. Pois no dharma, atuamos por achar que dada ação é o correto; é a convicção pessoal, íntima, que nos leva a escolher essa ou aquela conduta. Não há uma imposição exterior, alheia; ao contrário, é à nossa própria voz interna que ouvimos. Conjeturei sobre isso na postagem sobre Cannon.

A religião -qualquer uma delas- faz justamente isso: retira qualquer mérito das ações. Porque exige do crente que faça assim ou assado, caso contrário irá para o inferno. É a analogia da arma na cabeça. "Deus está vendo!", ouvimos quando crianças, para que nos comportemos. Ainda adultos repetem a ladainha, e ei-los homens tementes a Deus. O fato de um Deus precisar ser "temido" para ser obedecido mostra muita coisa. Não por acaso mais de uma pessoa chama a religião de camisa-de-força.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Hemingway, pescadores- e heroísmo


Eu acho que o "heroi ideal" -nas artes em geral, do cinema aos quadrinhos- é aquele com o qual nos identificamos. Na arte queremos ver a sublimação da vida, e é fundamental para isso que haja um mínimo que seja de identidade com a vida aqui fora; sem verossimilhança, não se cumpre esse papel. Não é abrir mão da fantasia (até pelo contrário): mas sim que possamos nos identificar com a fantasia. A vida real é feia, muito feia, sofre-se e chora-se, comemos o pão que o diabo amassou; se o heroi na tela (ou nas páginas do livro, dos comics etc.) não passam por isso, não é possível que nos identifiquemos com ele. O Homem-Aranha é popular por ser um heroi que tem dificuldades para pagar contas (além do nerd inseguro que Peter Parker é, no filme de Sam Remi), assim como, em outra dimensão do mito heroico, Arjuna é humano por ter dúvidas- o Bhagavad Gita é a história de Krishna convencendo-o a ser engajar em combate. E Heitor de Troia na Ilíada: não é o implacável e invencível Aquiles o personagem principal, apesar de mais famoso. E sim Heitor, que mesmo pressentindo a morte, tomado de preocupação pela mulher e filho, combate na linha de frente; porque a defesa da pátria é o certo. Heitor que mesmo valoroso também sente medo e foge mas que, no momento fatal, encara a morte de peito aberto; isso é ser humano, ser gente como a gente. O filme Troia, com Eric Bana como Heitor, mostrou um pouco disso, mas obviamente muito aquém da Ilíada.

Dentro dessa ótica, um dos personagens mais humanos que conheço da literatura é o pescador de "O Velho e o Mar", de Ernest Hemingway. A velhice por si só é uma coisa comovente, ainda mais se tratando de um idoso pescador curtido pelo sol; e sob uma maré de azar, ainda por cima. Dias e dias sem uma pesca exitosa, convertendo-se aos poucos na chacota da aldeia. Mas o velho não se entrega: cada dia de tentativa pode ser o dia da vitória.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O Império contra-ataca


Observemos os últimos acontecimentos. Não precisamos voltar muito no tempo nem ir muito longe: agora mesmo, aqui do lado, a violenta reintegração de posse do terreno do Pinheirinho e a investida contra os viciados na Cracolândia, ambos episódios no estado de São Paulo. Num caso, famílias que ocupavam o dito terreno há anos, no outro, verdadeiros farrapos humanos, destruídos física e moralmente. Ambos problemas sociais (por trás a economia e as relações materiais, que como ensinou Marx são a base de tudo), ambos tratados à base da porrada. Problemas "resolvidos" via batalhão de choque, gás lacrimogêneo, cassetete, cavalaria, dedo na cara e prisões.

Há surpresa nisso? Não, nem é novo. O autoritarismo é da essência do Estado (falamos disso aqui). A polícia é o braço armado do Estado, e tendo o Estado um caráter de classe, a polícia -seu braço armado- serve para atender a esses interesses de classe. Já que não poderia ser diferente, não deveríamos nos chocar (mas acho que não podemos nunca perder a capacidade de nos chocar) com a violência policial do PSDB de Alckmin; o que realmente choca, o que causa espanto, é ver que essa violência policial tem sido aplaudida por muitos setores da sociedade.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O egoísmo que derruba prédios


Desço pela Av. Rio Branco, no centro do Rio, após a sessão semanal do Instituto dos Advogados Brasileiros. Vejo de longe, na altura da Almirante Barroso, a densa nuvem, como se tivessem soltado muitos, muitos fogos. É asfixiante: para me aproximar (eu e os demais curiosos que começavam a se aglomerar) precisei levar o lenço ao rosto. Uma patrulha já começava a fechar o trânsito, e perguntei ao policial o que se passava. A resposta, algo incrédula, foi "um prédio caiu". Muita incredulidade por parte de todos, mesmo diante da montanha de escombros diante dos olhos. Muita gente já se aproximava, eu inclusive, ávidos para entender o que se passara. Como um prédio tão sólido, que há pouco estava lá firme e forte, em uma fração de segundos se reduzira a uma pilha disforme de concreto? Subitamente alguém gritou e, como é natural em situações dessas, bastou que alguém corresse para que toda a multidão (eu inclusive, também) corresse para longe do local- mas foi alarme falso, não houve mais nenhum desmoronamento. Daí os carros de bombeiros começaram a chegar e a área foi isolada, cortando o barato dos curiosos. Resolvi ir embora: era mais fácil, naquele momento, se informar através da imprensa que já começava a apurar os fatos (uma cobertura sobre os, não um, mas três prédios que desabaram naquela fatídica noite de 25/ 01, aqui).

A morte, quando vem de modo abrupto, repentino, traz sempre consigo o choque. Tragédias imprevisíveis (se era previsível e nada foi feito para que seja evitada, não era uma tragédia e sim um crime) mostram como somos impotentes. De uma hora para outra, sem o menor aviso: ei-nos misturados ao aço retorcido, sob pilhas de entulho, amassados nos escombros. Não se trata de ser mórbido, mas penso que esporadicamente é bom refletirmos sobre essas coisas: para colocarmos nossa arrogância no lugar. Uma fração de segundos e nossos planos são esmagados por toneladas de concreto.

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