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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Sobre Estados Operários degenerados


Joycemar Tejo
agosto de 2011

O Coletivo Lênin, organização marxista que reivindica as posições da IV Internacional, disponibilizou em seu blog (neste link) as resoluções que refletem seu acúmulo atual sobre o tema da degeneração burocrática, que acometeu os Estados Operários do Leste Europeu.

Com a autorização deles, reproduzo aqui essas resoluções (em destaque e em negrito), com as minhas considerações, logo abaixo.

a) a burocracia não é uma classe dominante, porque ela tem uma base superestrutural, e não está enraizada nas relações de produção. Por isso mesmo, a longo prazo, o interesse da burocracia é restaurar o capitalismo e se tornar burguesia.

Exato. A burocracia não é "classe", e sim "casta".

Em "Uma vez mais, a URSS e sua defesa", em polêmica com Craipeau, Trotsky diz: "Admitamos por um momento que a burocracia seja uma classe no sentido que este termo tem na sociologia marxista. Neste caso, encontramo-nos perante uma nova forma de sociedade de classe, que não é idêntica nem à sociedade feudal, nem à sociedade capitalista, e que jamais tinha sido prevista pelos teóricos marxistas".

Conceber a burocracia como uma nova classe é conceber um novo sistema de produção, que não seria feudal, capitalista, nem socialista, mas sim algo totalmente novo.

Há que se observar:

a) para Trotsky, mesmo que se tratasse de uma nova classe, seria uma classe qualitativamente superior à burguesia- pelo desenvolvimento das forças produtivas que obteve, "sem igual na história".

b) além do desenvolvimento econômico, Ted Grant, em "Contra a teoria do Capitalismo de Estado", fazendo referência à "Revolução traída" de Trotsky, cita também, como parte do papel progressista da burocracia, a defesa do país.

A burocracia não é classe, pois a propriedade dos meios de produção é do Estado. O capitalismo, ao contrário, pressupõe a propriedade privada dos mesmos.

A burocracia é casta, na medida em que se trata de um grupo, uma camarilha, uma fração da sociedade que usurpou o poder soviético; é a "gerente" do Estado Operário, tomando a primazia que, em uma experiência socialista não-degenerada, pertenceria diretamente à classe trabalhadora.

Não sendo proprietária, cedo ou tarde a burocracia irá querer sê-la. Afinal, "não basta ser gerente, é preciso ser acionista"- e eis a restauração do capitalismo pelas mãos da própria burocracia.

b) a economia da URSS e dos chamados Estados Operários Deformados não é capitalista, porque não funciona segundo as leis do mercado, e sim pela planificação burocrática.

A economia é socialista, pois além da propriedade estatal dos meios de produção, há o retorno social do produto do trabalho (isto é, não há apropriação privada). Novamente citando Grant, penso que "sob o socialismo, como sob o capitalismo, o sistema de produção será social, mas, diferentemente do capitalismo, também haverá um modo social de distribuição. Pela primeira vez, a produção e a distribuição estarão em harmonia". Grifo no original.

Na "Revolução traída", Trotsky dá os elementos que caracterizam a URSS como Estado Operário: "A nacionalização da terra, dos meios de produção industrial, do transporte e do intercâmbio, junto ao monopólio do comércio exterior, constitui a base da estrutura social soviética. Mediante estas relações estabelecidas pela revolução proletária, a natureza da União Soviética, como Estado proletário, está fundamentalmente definida para nós".

A planificação (sem o adjetivo "burocrática") é imprescindível nisso, haja vista que rompe o paradigma do laissez-faire capitalista.

c) a planificação burocrática não é uma forma de propriedade proletária ou socialista. A forma de propriedade socialista é a planificação controlada por comissões de fábrica e sovietes. A planificação burocrática, no começo do processo de industrialização pesada, é progressiva em relação ao capitalismo, mas não consegue absorver e organizar bases produtivas mais avançadas. A partir da revolução microeletrônica (década de 60 e 1970), a planificação burocrática atingiu o seu limite de eficiência na produção, e então se tornou regressiva em relação ao capitalismo. A única solução seria estabelecer a planificação socialista controlada pelos comitês operários, o que não aconteceu.

Penso que as resoluções caem em contradição aqui: a planificação burocrática não é proletária ou socialista (conceito que tomo como sinônimos); mas, ao mesmo tempo, no item "b" acima é dito que "a economia da URSS e dos chamados Estados Operários Deformados não é capitalista, porque não funciona segundo as leis do mercado, e sim pela planificação burocrática".

Ora: se não é capitalista e também não é proletária/ socialista, se trata de qual tipo de propriedade?

Penso eu que o problema não é econômico (partindo do princípio de que a planificação é, sim, proletário/ socialista) e sim político: a planificação não teve à frente a classe trabalhadora, mas sim a casta burocrática.

O socialismo não é apenas a propriedade social dos meios de produção; mas também a classe trabalhadora no poder. Haveria dois requisitos, um objetivo e outro subjetivo, se é que podemos dizer assim: a) a economia socializada; b) economia esta sob a direção da classe trabalhadora.

Não preenchendo esses requisitos, teríamos uma experiência degenerada.

Importante, aqui, frisar o seguinte: "estatização" não é, necessariamente, sinônimo de "socialização". Se fossem sinônimos, como diz Marx, o reacionário Bismarck seria o maior socialista da Europa, por ter...nacionalizado os correios. Daí a fundamentalidade da estatização sob controle operário.

Estatização é sinônimo de socialização, apenas caso se trate de um Estado Operário.

d) Devido ao caráter da planificação burocrática, a revolução contra a burocracia é social (muda as relações de produção) e não somente política. Para a revolução contra a burocracia ser vitoriosa, deve destruir o aparato estatal e criar outro, baseado nos sovietes e no armamento do povo.

Se, como penso eu, a planificação é própria da economia socialista, então a tarefa não é derrubar a planificação, e sim a casta burocrática que tem dado os rumos dessa planificação.

Destruir o aparato estatal, penso, é dizer que aquele aparato não é socialista; não se estará falando, portanto, em um Estado Operário degenerado, mas em outra coisa.

É evidente que a classe trabalhadora, uma vez no poder, deve não se apoderar do aparato estatal burguês, mas destruí-lo, erguendo outro em seu lugar. Daí dizer Marx, no "18 Brumário": "Todas as revoluções aperfeiçoaram essa máquina [estatal], em vez de a destruir". Isto é, "a idéia de Marx é que a classe operária deve quebrar, destruir a 'máquina do Estado', não se limitando apenas a assenhorear-se dela", como diz Lênin em "Estado e Revolução".

Contudo, isso se aplica à tomada do Estado Burguês. Se o Estado Operário degenerado, mesmo degenerado, é Operário, não há que se falar em sua destruição para erguimento de outro (mas, naturalmente, deverá desaparecer gradualmente conforme se avance ao comunismo, a etapa superior).

Usando o jargão popular, devemos jogar a água suja da bacia, e não a criança junto com a água suja.

e) Apoiamos todas as lutas contra a burocracia, inclusive por demandas democráticas, a menos que tenham um caráter abertamente pró-capitalista. Em todo caso onde for realmente possível lutar pela diferenciação política do movimento, levando ao surgimento de uma ala antirrestauracionista, não defendemos a repressão contra a base (que temos que ganhar para a perspectiva da revolução), e sim somente contra a sua direção. Nós só defendemos a repressão contra um movimento inteiro, incluindo a sua base, se o movimento se organizar abertamente em torno de um programa reacionário (xenofobia, racismo etc).

Creio que a democracia é inerente ao socialismo, se é o socialismo, como penso eu, "o mundo onde o homem se sente em casa" (Fromm). É por isso que considero redundantes expressões como "socialismo democrático", dado que não pode haver sistema de produção mais democrático que o socialismo.

Se há necessidade de uma "demanda democrática" dentro do socialismo, é porque claramente estamos diante de um experiência degenerada.

Qualquer cerceamento democrático, no socialismo, só faz sentido em um momento de exceção- guerra aberta, contrarrevolução. Mas tais medidas de exceção até o ordenamento burguês prevê, como se vê por exemplo nos arts. 136- 139 da Constituição brasileira.

Então eu diria, "apoiar as lutas contra a burocracia, PRINCIPALMENTE por demandas democráticas". Pois uma das armas para que a burocracia se mantenha no poder é o estado de medo e de censura imposto à classe trabalhadora.

Os movimentos essencialmente pró-capitalistas, por outro lado, não podem ser apoiados; em uma economia socialista, têm caráter reacionário (equiparando-se, no caso, aos exemplos da resolução: xenofobia, racismo). Frisei o "essencialmente", porque determinadas demandas, mesmo de movimentos pró-capitalistas, podem, conforme a situação, ser apoiadas. Em todo caso, se trataria de um apoio qualificado, diferenciado, puxando a base para a perspectiva da derrubada não do socialismo, e sim da burocracia.

*

A discussão está em aberto. Havendo resposta do Coletivo Lênin, postarei aqui.

6 comentários:

ADVOGADO ADRIANO ESPÍNDOLA CAVALHEIRO disse...

Na "Revolução traída", Trotsky dá os elementos que caracterizam a URSS como Estado Operário: "A nacionalização da terra, dos meios de produção industrial, do transporte e do intercâmbio, junto ao monopólio do comércio exterior, constitui a base da estrutura social soviética. Mediante estas relações estabelecidas pela revolução proletária, a natureza da União Soviética, como Estado proletário, está fundamentalmente definida para nós".

Pois, bem diante desta CORRETA formulação, tem-se, ainda, algum estado operário na face do Planeta Terra?

Não se motivos considero que Cuba e China restauraram o capitalismo, faz algum tempo.

Coletivo Lênin disse...

Aqui vão nossos comentários:

b e c) Nós consideramos que a economia não é socialista. O companheiro pergunta: então é o que, se também dizemos que não era outro tipo de sociedade de classes?

Nós achamos que era uma formação social híbrida ou, como Trotsky definiu, em A Revolução traída, "uma sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo". Ou seja, havia sido dado um grande passo até o socialismo (a expropriação da burguesia), mas esse grande passo não é suficiente para estabelecer o socialismo.

Parece que o companheiro vê a contradição como sendo entre a economia (socialista) e a superestrutura política (totalitária). Nos parece que ele vê as coisas assim porque analisa as formas de propriedade, e não as relações de produção, o que seria o correto a fazer. O socialismo, como modo de produção, é o "autogoverno dos produtores" (Marx). Ou seja, é baseado no controle das empresas e da planificação pelos trabalhadores, o que não é garantido pela economia estatizada, mesmo se a burguesia já tiver sido expropriada. Só com o controle do próprio processo de produção pelos trabalhadores, é que podemos falar em socialismo, do nosso ponto de vista.

d) sobre o Estado: foi justamente um dos elementos mais importantes que nos levaram a questionar o conceito de "Estado Operário burocratizado". Lênin define, em O Estado e a Revolução, o estado operário por três características:

- ser formado por sovietes
- ser baseado no armamento do povo
- revogabilidade da burocracia

Para criar essa estrutura na URSS e nos outros países do Leste Europeu, seria necessário destruir o aparelho de Estado. A maior prova disso foi a Revolução Húngara de 1956, onde houve divisão das forças armadas e formação de conselhos operários (ou seja, dualidade de poderes). Isso é muito semelhante ao que acontece numa revolução contra um Estado burguês, com a única diferença de que não é preciso expropriar a burguesia. E isso acontece porque, mesmo se dizendo "países socialistas", nestes países o aparelho de Estado era muito semelhante ao do estado burguês.

e) nos parece que a formulação do tejo é melhor que a nossa. A experiência mostrou que, em todos os movimentos contra o stalinismo, a luta pela liberdade de organização e pelas liberdades democráticas era vista como um pré-requisito para tudo mais.

rubro zorro disse...

Caro Tejo,
Você é um morenista inconsciente!
Em sua análise sobre como caracterizar um estado operário (operário degenerado, operário deformado, burocratizado, ou o que seja) senti a falta de um elemento: os organismos.
O socialismo (e os distintos tipos de regime) não se caracterizam apenas pela propriedade estatal e o planejamento pela classe trabalhadora, mas fundamentalmente, também, pelos organismos através dos quais a classe exerce o poder.
Eu particularmente tenho grandes dúvidas se o capitalismo não teeria sido restaurado quando a burocracia apodera-se desses organismos e muda seu caráter. Veja que o exércíto vermelho pós 36 não difere da estrutura de um exército burguês. E os sovietes se parecem aos parlamentos (porém com o controle absoluto da burocracia).
Mas é uma dúvida teórica.
Possivelmente trotsky, depois da guerra e analisando os processos que a sucederam teria aprimorado sua teoria.
Por fim parabéns pelo exercício de reflexão. É uma tarefa hercúlea!

J.L.Tejo disse...

Então. Quando falo na economia socializada sob o controle dos trabalhadores, como aspecto "subjetivo" do socialismo, podemos (devemos) incluir implicitamente aí a questão dos organismos através dos quais os trabalhadores exercerão tal controle. Se há controle, o controle é feito de alguma forma. Mas com certeza esse ponto pode ser melhor desenvolvido.

Muito boa a resposta do Coletivo Lênin. Irei pensar sobre esses pontos e, em breve, farei uma nova postagem aqui.

Acerca do comentário do Adriano, eu tenho sustentado que a China é capitalista com elementos -e apenas elementos- de socialismo, ou quando muito um sistema híbrido; Cuba, por sua vez, é socialista se abrindo (perigosamente) cada vez mais a elementos capitalistas. Mas no caso cubano a restauração ainda não é questão fechada.

Anônimo disse...

Caro Tejo,

Por fim, passeava pelo blog da Marli e vi este link...

Parabéns pelo novo projeto!

Anônimo disse...

Quanto às questões B e C considero que a URSS era socialista em seu aspecto organizativo, isto é: expropriação dos meios de produção, monopólio do comércio exterior e planificação econômica. Por outro lado, Trotsky afirma que a URSS não era socialista em seu aspecto material. Ou seja, a insuficiência das forças produtivas na URSS fez com que a economia soviética apenas tentasse alcançar os índices de desenvolvimento da economia capitalista. E retomando a Marx, o desenvolvimento econômico no socialismo é qualitativamente superior ao do sistema capitalista, portanto, se levarmos em consideração os índices econômicos da URSS, ela não poderia ser considerada socialista... Não em suas bases materiais.

Temos, então, um Estado onde o que predomina é a organização socialista, mas onde as forças produtivas são insuficientes e inferiores aos Estados capitalistas. Daí Trotsky afirmar que a URSS ser um Estado em transição. Por sinal, é essa insuficiência que provoca a burocratização da URSS.

Sobre a questão D temos um Estado organizado sobre bases socialistas, porém burocratizado devido às insuficiências econômicas da URSS. O Estado operário pressupõe uma organização socialista (que havia na URSS), e a burocratização pressupõe uma crescente contradição social originada da precariedade material onde as necessidades mais básicas ficam restritas a uma minoria privilegiada.

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