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segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Ainda degeneração burocrática


Joycemar Tejo
agosto de 2011

Em post anterior, eu havia tecido algumas considerações sobre o fenômeno da degeneração burocrática que acometeu as experiências socialistas no Leste europeu, a propósito das recentes resoluções do Coletivo Lênin sobre o assunto. Em linhas gerais, sobre o tema eu sustento que: a) a burocracia não é classe, e sim casta (e isso parece ser unânime, ao menos se se seguir efetivamente a posição trotskyana a respeito); b) o socialismo pressupõe dois elementos, a planificação da economia (socializando-a), como aspecto objetivo, e planificação esta sob o comando direto dos trabalhadores, como aspecto subjetivo; c) a ausência de comando direto da classe trabalhadora não retira o caráter socialista de dada experiência (naturalmente, com a condição de que haja a socialização dos meios e dos frutos da produção, isto é, desde que se mantenha o "modo social de distribuição", como diz Ted Grant), mas sim irá caracterizá-la como uma experiência degenerada, incompleta, viciada.

Se, mesmo degenerada, dada experiência ainda é socialista, há por bem que os revolucionários a defendam contra ataques- não só externos, como internos. O inimigo interno, bem entendido, é justamente a casta usurpadora, a burocracia termidoriana -alusão ao Termidor francês, quando do golpe de direita efetuado pelos girondinos- que deve ser derrubada para que o socialismo retome os eixos. Assim, tomando por base a experiência soviética, Trotsky diz que, se é possível em determinados casos frente única com a burocracia contra a restauração capitalista, "a principal tarefa política na URSS continua sendo a derrubada da própria burocracia termidoriana" (in "Programa de Transição"), derrubada esta "por meio de uma insurreição revolucionária dos trabalhadores" (in "The USSR in War", do primoroso "In Defense of Marxism" trotskyano).

O Coletivo Lênin, ao comentar minhas considerações (neste link), assim diz se referindo ao caráter da economia soviética:

Nós achamos que era uma formação social híbrida ou, como Trotsky definiu, em A Revolução traída, "uma sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo". Ou seja, havia sido dado um grande passo até o socialismo (a expropriação da burguesia), mas esse grande passo não é suficiente para estabelecer o socialismo.

Isto é, híbrida, mas não socialista, mesmo que um socialismo degenerado.

Eles prosseguem, com grifo meu:

Parece que o companheiro vê a contradição como sendo entre a economia (socialista) e a superestrutura política (totalitária). Nos parece que ele vê as coisas assim porque analisa as formas de propriedade, e não as relações de produção, o que seria o correto a fazer. O socialismo, como modo de produção, é o "autogoverno dos produtores" (Marx). Ou seja, é baseado no controle das empresas e da planificação pelos trabalhadores, o que não é garantido pela economia estatizada, mesmo se a burguesia já tiver sido expropriada. Só com o controle do próprio processo de produção pelos trabalhadores, é que podemos falar em socialismo, do nosso ponto de vista.

Penso, se entendi corretamente, que o socialismo, nessa ótica, requererá necessariamente os dois elementos (economia planificada mais controle dos trabalhadores); inexistindo essa junção necessária, não haveria socialismo (nem mesmo considerado degenerado), mas uma forma híbrida.

Como não fujo da "tentação de mudar de ideia" (como diz o sociólogo ianque Steve Fuller), venho refletindo sobre esse posicionamento e inclinado a adotá-lo. É a postura mais radical (vai à raiz) por ser a mais classista possível: admitir o socialismo apenas se houver direção exclusiva da classe trabalhadora. Não sendo o caso, trata-se de um arremedo, que não chega a ser socialismo (apesar de poder ser considerado um avanço).

Contudo, a questão ainda não me parece tão clara.

Penso que não existem sistemas de produção perfeitos, acabados ou, melhor dizendo, "puros". Elementos de sistemas diversos podem coexistir, sem que o principal seja desnaturado; o exemplo clássico é a NEP russa (socialismo com fortes elementos de economia de mercado), e, também como exemplo, a servidão feudal na Europa oriental ainda no séc. XIX, o que não autorizaria ninguém a dizer que o feudalismo era a forma dominante no séc. XIX. Da mesma maneira, o paradigma capitalista clássico -tomando como parâmetro as construções teóricas liberais, a "mão invisível" de Adam Smith etc.- vai rejeitar a participação do Estado na economia. Mas nenhum capitalismo, até hoje -nem mesmo o formato neoliberal, que também não prescinde do Estado, por mais que seus defensores jurem o contrário- ficou isento de ações governamentais, mais ou menos fortes, mas sempre presentes. Contudo, ninguém ousaria dizer, mesmo diante do mais sólido Welfare State, que não se trata de uma economia capitalista.

Vale dizer: assim como há capitalismo imperfeito, que não deixa de ser capitalismo, também há o socialismo imperfeito, que não deixa de ser socialismo.

A "imperfeição" aqui tratada, que dá a pecha de degenerado ao socialismo, está na ausência de controle da classe trabalhadora, controle este usurpado pela casta dirigente. Que as massas devem estar à testa do processo é evidente, daí, ecoando "O Estado e a revolução" de Lênin, Alan Woods dizer (in "Reformismo ou revolução", v.2):

A primeira condição para o estabelecimento de uma verdadeira democracia operária é a participação ativa das massas desde o começo (...) Em novembro de 1917, Lênin escrevia o seguinte apelo em 'Pravda': 'Camaradas trabalhadores! Lembrem-se de que vocês mesmos governam o país (...)'"

O grifo é meu. A grande questão aqui é se a ausência desse controle operário (roubado pela casta burocrática) faz da experiência um socialismo degenerado ou se lhe tira o próprio caráter de socialismo.

Trotsky, na "Revolução traída", diz o seguinte:

A revolução que a burocracia prepara contra si própria não será social como a Revolução de Outubro de 1917; não se tratará de mudança das bases econômicas da sociedade, de substituir uma forma de propriedade por outra.

Ora, se não se trata de mudar a base material, é porque essa base material já é socialista. Dizer que é "tendente a sê-la" não faz muita diferença prática, porque em todo caso se trata de sua conservação (mesmo que para melhorá-la) e não de sua superação (como seria o caso da base capitalista). O combate que se trava é contra o grupo dirigente, e não contra a economia. Penso que há, de forma nítida, dois elementos: o econômico e o político, daí eu falar -mesmo que impropriamente- em aspectos objetivo e subjetivo do socialismo.

Voltando à "Revolução traída", Trotsky, ao mesmo tempo em que elenca o rol de elementos da economia soviética que "define aos nossos olhos a URSS como um Estado Operário", diz que "qualificar o regime soviético de transitório, ou de intermediário, é separar as categorias sociais acabadas como o 'capitalismo' (compreendendo o 'capitalismo de Estado') e o 'socialismo'". É o risco das definições "fechadas": nem sempre a vida real cabe num rótulo... Mas, se se trata de qualificar como "transitória" (e é nesses termos, o do "se se deve", que entendo a colocação de Trotsky), é preciso qualificar levando em conta o seguinte:

The Soviet Union is a contradictory society halfway between capitalism and socialism, in which: (a) the productive forces are still far from adequate to give the state property a socialist character; (b) the tendency toward primitive accumulation created by want breaks out through innumerable pores of the planned economy; (c) norms of distribution preserving a bourgeois character lie at the basis of a new differentiation of society; (d) the economic growth, while slowly bettering the situation of the toilers, promotes a swift formation of privileged strata; (e) exploiting the social antagonisms, a bureaucracy has converted itself into an uncontrolled caste alien to socialism; (f) the social revolution, betrayed by the ruling party, still exists in property relations and in the consciousness of the toiling masses; (g) a further development of the accumulating contradictions can as well lead to socialism as back to capitalism; (h) on the road to capitalism the counterrevolution would have to break the resistance of the workers; (i) on the road to socialism the workers would have to overthrow the bureaucracy. In the last analysis, the question will be decided by a struggle of living social forces, both on the national and the world arena.

São exatamente 9 (nove) itens, conforme Trotsky, que irão matizar, qualificar, mediar, a caracterização do "transitório".

É uma complexidade que desconcerta. Trotsky entende isso, e alerta:

Naturalmente os doutrinários não se satisfarão com uma definição tão vaga; desejariam fórmulas categóricas, "sim - sim, não - não". As questões da sociologia seriam bem mais simples se os fenômenos sociais tivessem sempre contornos precisos.

Não se pode, conclui Trotsky, dar definições acabadas para experiências inacabadas.

Concluindo, por enquanto. Não acho que essa discussão seja irrelevante: foi por causa do debate acerca da caracterização da URSS, dentre outros episódios, que o Socialist Workers Party rachou e que Natalia Sedova rompeu com a IV Internacional. Mas me parece que o importante, para nós que herdamos -ou pretendemos ter herdado- a tradição desses revolucionários do passado, visando o futuro, é tirar esse debate do campo meramente teórico e trazê-lo para a vida concreta, impedindo assim que uma controvérsia de "definição" inviabilize a coesão das forças revolucionárias.

Ou seja: abstraindo toda a dificuldade teórica de se caracterizar tais Estados (inclusive levando em conta que pode ser impossível uma definição "acabada"), há algo que é um consenso: tais experiências eram deformadas, imperfeitas, viciadas. Tal impureza -a degeneração burocrática- quer tornando o socialismo "degenerado", quer sequer permitindo a caracterização de socialismo, é o maior entrave no caminho da classe trabalhadora.

O remédio, penso eu, para impedir que novos stalinismos voltem a se apoderar da revolução, obra do sacrifício da classe trabalhadora, é um só. A revolução permanente, em todos os seus sentidos. E isso pressupõe um marxismo crítico (o que é uma redundância), iconoclasta, revolucionário, radical. Só assim se poderá falar em ditadura do proletariado- e jamais de uma casta usurpadora.

4 comentários:

Anônimo disse...

"Penso, se entendi corretamente, que o socialismo, nessa ótica, requererá necessariamente os dois elementos (economia planificada mais controle dos trabalhadores); inexistindo essa junção necessária, não haveria socialismo (nem mesmo considerado degenerado), mas uma forma híbrida"

Eu concordo com o Tejo. A economia planificada dá um caráter socialista à URSS. A ausência do controle operário é o que caracteriza a degeneração do Estado Operário.

Insisto que a afirmação do Trotsky sobre o caráter transitório da URSS reside na insuficiência das forças produtivas. E aqui devemos pensar no próprio processo de burocratização. Segundo Trotsky, a burocratização não se deu por conta de uma "tradição" histórico-cultural da Rússia, (como dizia Stálin) mas sim por conta da precariedade material que originou uma burocracia. Essa burocracia tem por finalidade tapar os poros dos conflitos sociais gerados pela precariedade econômica e ao mesmo tempo governar em seu benefício.

Anônimo disse...

"Para criar essa estrutura na URSS e nos outros países do Leste Europeu, seria necessário destruir o aparelho de Estado. A maior prova disso foi a Revolução Húngara de 1956, onde houve divisão das forças armadas e formação de conselhos operários (ou seja, dualidade de poderes). Isso é muito semelhante ao que acontece numa revolução contra um Estado burguês, com a única diferença de que não é preciso expropriar a burguesia. E isso acontece porque, mesmo se dizendo "países socialistas", nestes países o aparelho de Estado era muito semelhante ao do estado burguês" (Coletivo Lênin)

Essa questão é um pouco mais complicada. Não sei ao certo se o que houve na Hungria foi uma "destruição" do aparelho de Estado, ou pelo menos uma tentativa disto, ou se a revolução política ampliou a democracia operária que fez com que aos poucos o aparelho do Estado fosse perdendo a sua onipotência.

Talvez a própria revolução política dissolva aos poucos o aparelho de Estado.

Anônimo disse...

Acho esse debate realmente essencial e fundamental para que o comunismo seja algo possível de ser pensado, portando, discordo de que se deva "abstrair de toda a dificuldade".

Perçebo também que seus dois elementos, objetivo e subjetivo, estão ironicamente sem nenhuma articulação dialética. A economia política e a política econômica seriam formas mais adequadas de abordar a questão. Toda política tem impacto econômico (distribuir renda tem impacto econômico), toda economia tem impacto político (pois define o grau de antagonismos, as classes, as pressões sobre o Estado, etc).

O tema do Estado é fundamental, na minha leitura há uma pleiade de obras que respondem parcialmente a questão do Estado, que seriam: Manifesto Comunista, Guerra Civil em França, 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Crítica ao Programa de Gotha, Sobre a 'Estatalidade' de Backunin e Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. Cada um é uma peça do quebra cabeça para a formação da questão do Estado, socialismo e comunismo, da ditadura do proletariado, da organização política, etc. Mas antes de tudo, temos que admitir que em Marx e Engels isso nunca é abordado inteiramente, por razões talvez óbvias, já que a relevância desse tema só ocorreria com as questões sobre o stalinismo.

Creio que a abordagem de que a revolução russa foi muito mais neojacobina do que comunista ou socialista seria a definição mais correta, pois admitir que fosse socialista encontraria uma série de contradições em Marx, como a tese fundamental de que é o capitalismo avançado que engendra em suas contradições imanentes as novas formas de socialibilidade e organização comunista. Se ignorar essa tese de Marx, todo o cientificismo comunista perderia a validade. Assim, um neojacobinismo foi refém de um neobonapartismo (stalinismo), o que dada as limitações socio-históricas da Rússia pré-capitalista teria sido mais ou menos inevitável.

Faço a ti uma questão, a China de hoje está mais próxima do comunismo do que a URSS de ontem? Na minha opinião, sendo coerente com O Capital de Marx, estaria sim. Pois nessa análise o estágio chinês seria uma "acumulação primitiva" e o perfil político dessa fase, apresentada por Marx, é completamente coerente com o regime autoritário chinês. A questão é, o que ocorreria depois de realizada a acumulação primitiva chineza? Quando arrancada toda a o população chinesa da sociedade tradicional para uma sociedade de classes? Acho que esses sinais já estão começando a ocorrer...

J.L.Tejo disse...

Lena,

"Insisto que a afirmação do Trotsky sobre o caráter transitório da URSS reside na insuficiência das forças produtivas."

Penso que tanto Lênin quanto Trotsky, ao repetirem que a URSS ainda não era socialista, se referiam justamente ao atraso material. Essa posição particularmente não me causa estranheza, haja vista que a transição é da própria essência do socialismo, isto é, o socialismo é transitório. Dizer que é transição para o socialismo, ou que é socialismo, não traz dificuldades, pois a transitoriedade é inerente.

Communard,

Quando me refiro aos aspectos subjetivo e objetivo, para que se configure um Estado Operário (que é sinônimo de socialista, pois não concebo Estado Operário capitalista como não concebo Estado Burguês socialista), tento fazer justamente a conciliação dos planos político e econômico. O Estado Operário degenerado é aquele no qual o aspecto subjetivo (político) é deficiente- não é a classe trabalhadora no poder, e sim uma casta (a burocracia) em nome dela. Mas as bases materiais, econômicas, são socialistas (aspecto objetivo), daí a revolução nesses casos ter caráter político mas não econômico: derruba-se as castas burocráticas mas se mantém as bases da economia.

Você tem razão, sobre a ausência de uma "Teoria Geral do Estado" em Marx. É uma das críticas (construtivas, reconheço) que o liberal Norberto Bobbio faz em "Qual socialismo?", na qual expõe problemas diante do marxismo.

Sobre a China, eu considero a experiência um capitalismo com elementos de socialismo, ou quando muito capitossocialista ou sóciocapitalista, isto é, híbrida, se é que isso é possível. Não tiro a razão, portanto, dos maoístas ortodoxos quando dizem que a restauração capitalista se deu com a ascensão do grupo de Deng Xiaoping em 76.

Eu não endosso a visão mecanicista da História, que irá requerer etapas bem definidas. Penso como Adam Schaff, que diz: "Quando se fala de determinantes econômicas da evolução história, não se faz confissão de um fatalismo econômico qualquer, e sim uma análise de determinantes da evolução, (...)". A visão etapista -uma interpretação errônea de Marx- pode levar a que se desemboque no marxismo vulgar.

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